Transfigurar nossa capacidade de escuta

Data:

“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o
meu agrado. Escutai-o!” (Mt 17,5)

 

O apelo do Deus de Jesus a seu
povo, a cada filho e filha é este: “escutar”. O maravilhoso “Shemá
Israel”
, que nossos irmãos judeus tanto repetem e veneram, esteve nos
lábios de Jesus infinitas vezes ao longo de sua vida. Em seus lábios sim, como
bom judeu que era, mas sobretudo em sua vida, como uma atitude.

De Jesus falamos mais de suas
palavras e de seus feitos, o que Ele “fez e disse”.

Quando nos referimos ao seu “fazer”,
nós nos fixamos em suas curas, em seus gestos eloquentes como multiplicar o pão
para alimentar a multidão, no gesto de lavar os pés dos seus discípulos, de devolver
vida e força às pessoas alquebradas por enfermidades etc.

E o que Ele “disse”,
os textos canônicos e apócrifos conservam para serem rezados, estudados,
repetidos diariamente em centenas de liturgias, nos corações orantes, nos
estudiosos enamorados da Palavra…

De
Jesus falamos muito pouco de sua escuta. Jesus é “Shemá” em sua mais
pura essência. Embora pareça que tenha falado muito, sempre nos inspira uma
etapa longa de sua vida, antes de seu batismo, na qual vivia uma vida normal,
como todo bom judeu, cujo guia foi a fidelidade ao “Shemá”.

Jesus
escutava seu Abba, sua realidade social e religiosa e continuou escutando. E
porque escutou, se tornou um buscador; encontrou João no deserto e o escutou.
Depois de um tempo, tomou uma decisão, deixou-se batizar e imediatamente foi
conduzido pelo Espírito ao deserto para escutar.

O
motor da atividade de Jesus foi a escuta da voz do Pai, dos
textos revelados e do pulsar da vida.

 

Assim como aconteceu com Jesus,
ativar a capacidade de escuta é a que nos possibilita a entrada no mistério. A escuta
é como um sacramento que nos unge para a trajetória do seguimento de Jesus, para
a travessia que nos faz sair das pequenas ou grandes atrofias: maneiras de
pensar, opiniões petrificadas e inamovíveis sobre Deus e os outros, atitudes
petrificadas, moralismos doentios, culpas mórbidas… para poder caminhar em
direção à plenitude de vida, que é a meta. Tal plenitude não é um lugar físico,
é um “estado interior” que nos ajuda a descobrir a direção e a felicidade. Na
mentalidade judaica trata-se da “Terra prometida”.

Esta
não consiste simplesmente em estarmos bem, mas em estarmos em comunhão com
tudo, em descobrir que somos uno, que estamos conectados, que somos uns com os
outros, que possivelmente passou por nossos pulmões o mesmo oxigênio que passou
pelo resto da humanidade, que somos pó de estrelas…; logo, pertencemos ao
infinito, ao cosmos e desfrutamos contemplando as estrelas. Somos família.

 

Escutar é perigoso, subverte; e é
libertador, pois nos arranca da estabilidade e da acomodação. Quem escuta sai
de si e se põe em movimento. Escutar é conectar com o pulsar de tudo e sentir
que é preciso ser pessoa de travessia para outra margem, pessoa capaz de soltar
para acolher, para abraçar e acompanhar.

A vida não é um mistério para
aqueles que elegem caminhos seguros. Nossa vida começa a sentir o mistério
quando escutamos e entramos em sintonia com a realidade e de sua mão nos
deixamos introduzir em outro nível, o do “Shemá”, o da escuta da pulsação d’Aquele
que é Presença providente e cuidadosa.

A festa
da Transfiguração
nos anima a que nos tornemos homens e mulheres de
“Shemá”, de escuta. Deixar que o longo tempo que Jesus se dedicou a escutar nos
contagie; deixar que este aspecto de nossa essência configure mais e mais nossa
identidade como pessoas “escutadoras”.

A escuta mais profunda se realiza a partir da
quietude e do silêncio interior. Como no lago sem ondas, em cuja superfície
lisa se refletem as imagens, o ouvido interno capta o som de vida criada e
criadora só quando os ruídos artificiais forem aquietados. É preciso afinar
mais a capacidade de escuta interior para melhor sentir, discernir e optar.

Ao escutar Jesus nos sentiremos movidos a sair de
nosso conformismo, romper com um estilo de vida egóico no qual estamos, talvez,
confortavelmente instalados e começar a viver mais atentos à interpelação que
nos chega a partir dos mais excluídos e desvalidos de nossa sociedade.

 

Saber
escutar nos liberta do fechamento indiferente, do fanatismo e do
conservadorismo que aprisiona a vida; liberta-nos também da surdez cúmplice dos
ruídos alienadores que bloqueiam os clamores que provém da Terra machucada e
dos irmãos violentados.

O
“ouvido evangelizado” nos permite abrir ao diferente, à palavra e ao silêncio,
à brisa e ao rugir da tormenta. Através do ouvido podemos saborear a beleza das
melodias da natureza (água, vento, árvores, pássaros…) e da criação
artística. Um ouvido atento que possa perceber o Silêncio, um silêncio
carregado de Presença, e o Mistério que pode ser nomeado de diversos modos:
Transcendência, Ser, Energia Puríssima, Alá, Deus, Ser, Presença…; Jesus de
Nazaré o denominou “Abba”, como expressão de sua experiência de relação
amorosa.

Saber escutar foi e continua sendo uma aprendizagem
longa e difícil, que não termina nunca, e que vai nos conduzindo a um encontro
com a Vida; portanto, a uma aprendizagem no caminho em direção ao amor.

É preciso aprender o ofício de “escutadores/as”;
escuta descentrada que nos coloca no lugar da outra pessoa, escuta para ativar os
dois ouvidos: um atento às necessidades dos outros, e o outro atento às nossas
próprias ressonâncias interiores.

Por isso, é importante aprofundar no que significa
fazer do ouvido um lugar para o encontro com o Ser, com a vida, com o Amor,
porque isto supõe uma aprendizagem, requer arte e técnica, supõe transitar caminhos diferentes, cultivar um modo original de nos fazer presentes na realidade que
nos envolve.

 

É
preciso afinar cada vez mais nossos ouvidos para poder escutar a voz dos sem
voz, daqueles que já não tem nem forças para gritar, daqueles que perderam a
esperança de serem escutados, daqueles que ficaram exaustos, atirados nos
caminhos que eles acreditavam serem de vida e na realidade se converteram em
ratoeiras de morte. Escutar não só os sem voz, mas todas as vozes silenciadas
pelo medo, opressão, exclusão, violência, machismos imperantes durante tantos
séculos. Vozes de quem não lhes damos voz, porque não são dos nossos, porque
nos parece que não tem nada a contribuir, ou porque suas vozes diferentes das
nossas nos ameaçam em nossas “seguranças-inseguras”, porque nos deslocam e nos
põem em dúvida, porque nos denunciam e desmascaram nossas mentiras pessoais,
sociais, culturais e religiosas.

Nossos ouvidos estão muito condicionados pelo nosso
lugar social, racial, geográfico, familiar, ideológico…

Escutar não é ouvir. Ouvir é um processo
fisiológico, escutar é outra coisa. É um processo psicológico e espiritual que
supõe a implicação de toda a nossa pessoa, requer atenção, interesse,
motivação…

Saber escutar é uma arte e uma missão, uma
aprendizagem no qual podemos nos exercitar.

A escuta é, em si mesma, terapêutica pela
capacidade que tem de facilitar a chave de compreensão da realidade do outro e
de nós mesmos.

Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza
egoisticamente.

 

Texto bíblico: Mt 17,1-9

 

Na
oração:
Inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer
consigo.

A oração, por si mesma, é uma rebeldia
contra a pressa dominante: uma oração mesclada de silêncio profundo, de
respeitosa contemplação, isto é, de verdadeira escuta.

– Tome consciência daquilo que obstrui os seus ouvidos e os torna incapazes de prestar atenção (Jer.
6,10).

– Tome consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da
incapacidade de escutar o outro, fazendo ressoar a sua voz no seu coração.

– Tome consciência de todas as mensagens negativas que transformaram,
seduziram e enganaram  seus ouvidos,
tornando-os  surdos às mensagens
celestes, à Palavra da verdade e da vida.

– Tome consciência da hipersensibilidade auditiva que o faz reagir
bruscamente frente à incompreensão ou o seduz diante das vozes de morte que
alienam e matam a capacidade de discernir.

 

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