O samaritano que nos habita

Data:
13/07/2025

“Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas” (Lc 10,34)

Toda parábola apresenta-se como uma narrativa breve, de uma beleza especial, fácil de ser guardada na memória dos ouvintes, que podem continuar ruminando seu significado. Normalmente, quem a narra, não faz aplicações concretas, nem apresenta uma “lição de moral”; pelo contrário, deixa aberto o caminho para a criatividade daqueles que a escutam, para que tirem suas conclusões pessoais.

A parábola do “bom samaritano” é inspiradora para a construção de uma nova cultura comunitária, inclusiva e solidária. Nesta narrativa, além do legista curioso, há uma série de personagens e suas atitudes: um homem, os bandidos, um sacerdote e um levita, um samaritano, um dono de hospedaria, tudo determinado por um caminho de “descida” que esconde armadilhas para pessoas que seguem sozinhas pela vida.

A parábola de Jesus descobre, revela e desvela uma doença que, no fundo, são os nossos estilos de vida, onde já não há mais lugar para o humano, não há lugar para o encontro, não há lugar para o transcendente, não há lugar para uma vida interior rica… Mesmo no campo religioso, tudo é cronometrado, tudo é apressado. Carecemos de uma vida mais intensa de relações, de proximidade, de abertura ao diferente.

Muitas vezes estamos fisicamente próximos uns dos outros e, ao mesmo tempo, completamente ausentes, frios, insensíveis; outras vezes encontramo-nos e só esbarramos uns nos outros; somos ilhas e não uma comunidade compassiva. O desafio é restabelecer os vínculos humanos de proximidade e de acolhida, do outro, sobretudo aquele que é diferente e que está estendido à beira da estrada da vida.

Na sua essência, o ser humano é um “ser de relações”, está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão…; ele é reserva de humanidade, de compaixão, de bondade… que se expressa numa vida comprometida com a dignidade humana.

Vive-se continuamente em contato com o “outro”. E o outro é pessoa; o outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático; o outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito…

O relato da parábola deste domingo apresenta um doutor da lei, ou seja, um personagem considerado “justo” no imaginário da época, que faz a Jesus a única pergunta verdadeiramente importante: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?”  Lucas utiliza um termo preciso, “herdar”: trata-se de um bem que não é merecido, mas, como a herança, só pode ser recebido.

Jesus, como bom pedagogo, não responde diretamente à pergunta, mas convida o próprio interlocutor a encontrar a resposta. E, de fato, o doutor da lei é perfeitamente capaz de fazê-lo, unindo dois textos da Torá: a vida é herdada quando se ama a Deus e o próximo.

Diante da nova pergunta – “E quem é o meu próximo?” – Jesus responde apresentando uma cena da vida bem conhecida. A estrada entre Jerusalém e Jericó era um lugar muito perigoso para quem se aventurava sozinho, e não raramente, caia em ciladas e emboscadas, colocando-se em risco a própria vida.

O primeiro personagem da parábola não possui características particulares; ele é um “homem”; nenhum esclarecimento sobre linhagem, filiação religiosa ou moralidade. A única característica sobre a qual Jesus insiste é que este homem foi vítima de violência e que morrerá se não encontrar ajuda.

Em seguida, Jesus apresenta dois personagens que, por acaso, se deparam com o infeliz. E aqui o texto deixa claro a identidade deles: são pessoas respeitáveis, religiosas, um sacerdote e um levita; ambos têm a mesma reação: passam adiante. A filiação religiosa e a capacidade de viver a fraternidade não coincidem.

Por fim, entra em cena um personagem que não tem nada de atraente, ele é um samaritano, pertencente a um povo desprezado pelos judeus porque se corromperam unindo-se a outros povos e às suas tradições, negando a fé dos seus pais.

A parábola do samaritano pode ser iluminada por aquela exortação/súplica de Jesus: “eu quero a misericórdia e não sacrifícios” (Mt 12,7) e que aponta para dois modos de conceber e viver a religião (a relação com Deus e com o outro); uma, vivida com o coração voltado para os miseráveis (cor-miser) e a outra centrada no culto e nas leis. E recordemos que Jesus conta a parábola quando lhe é perguntado sobre o essencial para herdar a vida eterna. A urgência de atender alguém que jaz prostrado à beira do caminho não pode ser esvaziada por nenhuma desculpa possível, por mais “religiosa” que seja: o sacerdote e o levita não ficam justificados, porque não têm justificativas válidas aos olhos de Jesus. Ambos chegaram pontualmente ao Templo, mas estavam vazios, porque Aquele a quem buscavam jazia, agonizando, à beira do caminho.

A religião cristã não se define por seus dogmas, doutrinas, ritos, leis…, mas por se “fazer próxima” de quem está à margem. Implica entrar no fluxo da “proximidade” de Deus, que rompe as distâncias e vem ao encontro de todo ser humano. Deus tem mais facilidade de se fazer próximo através das feridas, fracassos…

Se Jesus disse que quem passou ao largo foram um sacerdote e um levita, os profissionais da religião, o que na realidade está dizendo é que a religião, muitas vezes, desvia a atenção e o interesse das pessoas, fixando-se em normas, ritos, sacrifícios que não alimentam uma sensibilidade solidária para com aqueles que são vítimas e estão à beira das estradas; com isso, a prioridade da religião é justificada sobre qualquer outra coisa, mesmo que seja a vida ameaçada, a injustiça sofrida, a dor humana extrema.

Por isso, tantas vezes, o centro de atenção dos “encarregados” da religião está no culto sagrado, na adoração a Deus, que, na lógica deles, são práticas que devem estar acima daquilo que é meramente humano.

No entanto, para Jesus, a necessidade humana vem antes da observância religiosa; esta, só tem sentido quando é expressão de uma presença compassiva e quando mobiliza as pessoas a se aproximarem e se comprometerem com as vítimas, ou seja, os excluídos, os feridos e desamparados.

Toda parábola tem também uma ressonância em nosso interior e os seus personagens são nossos espelhos; neles, nos vemos. Na parábola do “bom samaritano”, somos todos os personagens ao mesmo tempo. Eles nos habitam. Somos todos caminhantes e no caminho nos encontramos com pessoas feridas, isoladas, abandonadas por pessoas, pelo sistema, pela religião… Com qual deles nos identificamos? Qual deles queremos ser de verdade, para além da nossa função e da nossa autoimagem?

No fundo só seremos samaritanos se nos tornamos próximos, irmãos, compassivos. Só seremos o que somos de verdade se acompanhamos o ferido. Pois, todos somos caminhantes e companheiros de caminho. Cada um vai por seu próprio caminho, é verdade e assim deve ser; mas todos os nossos caminhos, por mais diferentes que sejam, se cruzam um dia, a cada passo, em cada palmo de terra comum. A vida de todos é a mesma vida. O Espírito que nos habita e nos faz viver é o mesmo que atua em tudo e em todos.

Só respiraremos se nos deixarmos inspirar, alentar, levar pelo espírito universal da luz e da compaixão, o espírito do consolo e da esperança. E só então poderemos romper nossos próprios isolamentos, sanar nossas próprias solidões e feridas, exercitar nossa solitude sanadora, nosso ser solidário.

Em chave de interioridade, o encontro com o “samaritano” desperta o nosso ser samaritano; é preciso deixar que ele transite pelas dimensões feridas de nossa existência. Há muitas situações prostradas em nosso “eu interior”: feridas, fracassos, traumas, crises, sentimentos feridos… que não foram acolhidos e nem inte-grados. Nosso ser samaritano, portador do óleo de vida, vai ungindo e aliviando nossos feridos, acolhendo-os na hospedagem de nossa existência.

Quem ativa seu ser samaritano e transita pelos caminhos da exclusão interior, também sentirá despertar uma sensibilidade solidária para com aqueles que estão prostrados à margem da vida.

Texto bíblico: Lc 10,25-37

Na oração: – Como reajo frente à surpresa e aos imprevistos da vida? Em quê situações passo ao largo, e por quê?

– Em que sou parecido ao sacer-dote e ao levita?

– Que traços do bom samaritano os outros poderão descobrir em meu comportamento? Em quê projetos solidários estou colaborando atualmente?

– Tenho muitas tarefas a realizar, demasiados compromissos que não deixam espaço à gratuidade nem à surpresa inesperada e incontrolável?

Compartilhar

LEIA MAIS

25 ago 2025

ETE FMC – Projeto de Vida: Identificando Talentos

24 ago 2025

Porta Aberta: Travessia para o Inesperado

17 ago 2025

Maria, a mulher dos olhos contemplativos

14 ago 2025

Retiro da Diocese de Campo Limpo

11 ago 2025

Mosteiro de Itaici organiza tríduo em honra a Santo Inácio

10 ago 2025

Buscar o tesouro que somos

07 ago 2025

22º Curso de Aprofundamento Teológico e Pastoral do Clero Arquidiocesano

07 ago 2025

Rede Servir realiza III Simpósio de Espiritualidade Inaciana em Itaici

03 ago 2025

Vazio interior: uma morte lenta

01 ago 2025

Retiro da Diocese de São José dos Campos

26 jul 2025

50 Anos do Congresso Fabra no Mosteiro de Itaici

27 jul 2025

Ser aprendiz na escola de oração de Jesus

20 jul 2025

O ativismo que nos seca por dentro

13 jul 2025

O samaritano que nos habita

06 jul 2025

Itinerância comprometida com a vida e a paz