“Jesus
acolheu as multidões, falava-lhes do Reino de Deus e curava todos os que
precisavam”
(v. 11)
O
dia de “Corpus Christi”,
tradicionalmente celebrado na quinta-feira depois da Trindade, é festa do Deus
feito carne e sangue humano, é festa cristã da humanidade de Deus, da divindade
do ser humano.
Esta
festa revela mil riquezas que deveriam ser realçadas no diálogo com a
humanidade, afinal, o Corpo de Deus é, por Cristo, o ser humano inteiro, a
humanidade completa; é festa cristã, mas que quer ser universal, a festa de
todos aqueles que desejam vincular-se entre si, de um modo concreto,
partilhando o pão, bebendo juntos o vinho da vida, em alegria e esperança,
dispostos a colocar suas vidas a serviço da vida.
Festa
do Corpo de Jesus e de todos os corpos; festa do pão e do vinho, frutos da
terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivento; o
Universo, com suas estrelas e galáxias, é um corpo imenso. Corpo sagrado,
porque habitado pela presença divina.
Celebremos
nosso corpo, tão maravilhoso e vulnerável! Cuidemos do corpo, sem torturá-lo
com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos!
Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem explorá-los! Sintamos como
próprio o corpo do faminto, do violentado, do refugiado, da mulher violada,
maltratada, assassinada… É nosso corpo; é o Corpo de Jesus; é o Corpo de
Deus.
O
corpo humano está, portanto, no centro da revelação cristã, pois se
trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo,
que se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e
engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade
abraça a carne, acolhendo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus
se revela encarnando-se, assumindo um Corpo
que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme,
vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa
mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado entre as trevas da
terra como toda criatura.
Frente
a um contexto social e político que faz opção clara em favor da morte, os(as)
seguidores(as) de Jesus proclamam em alta voz seu compromisso em favor da vida.
É uma incoerência tremenda realçar o espírito da festa de Corpus Christi quando
corpos são violentados, multidões são expostas à fome e miséria, pessoas e grupos
são excluídos por preconceito, intolerância…
Sim,
“Corpo
de Deus”! Deus é como o pulsar íntimo, a energia originária, a
criatividade inesgotável, a possibilidade infinita, a força do bem, a comunhão
universal, a Presença plena em cada ser humano, numa eterna evolução; Deus é
infinitamente “mais” que a soma de todos os corpos que compõem a humanidade. Somos
n’Ele. Ele é em nós, infinitamente mais que um Tu separado. Toma corpo no trigo
que se transforma em pão ou na vinha que floresce nos campos e se transforma em
vinho; corpo que se faz alimento e alegra o coração, na promessa de nos reconduzir
às entranhas do amor do mesmo Deus.
Jesus fez do universo seu corpo e se faz pão e vinho para nós. O pão suscita e cria Corpo…; Jesus não
anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma pura lei social, princípio
religioso… Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é corpo, isto, é, vida
expandida, sentida, compartilhada. O Evangelho nos situa desta forma no nível
da corporalidade próxima: Jesus é corpo que quebra distâncias, acolhe o
diferente e cria comunhão. Podemos dizer que Jesus desencadeia um “movimento
corporal humanizador”; por isso, Ele se faz alimento que a todos
sustenta, criando uma comunhão corpórea universal, pois ninguém está excluído.
Sabemos
que o corpo é identidade e comunhão,
individualidade e comunicação, a vida inteira alimentada pelo pão. A antropologia de Jesus não é dualista, que
separa corpo e alma. A festa do Pão divino está nos revelando que corpo não é
aquilo que se opõe à alma, exterioridade da pessoa, mas pessoa e vida inteira.
Corpo
é o mesmo ser humano enquanto comunicação e crescimento, exigência de alimento
e possibilidade de morte: fragilidade e grandeza de alguém que pode viver o
encontro com o outro, partilhando sua vida e suas energias, criando assim um
“corpo” mais alto (comunhão) com todos.
Nesse sentido, a Eucaristia se revela como centro da vivência cristã. A
transformação das relações humanas se dá através do partir o pão e do passar o
cálice de vinho; como o pão é um,
comer desse pão nos faz todos um. A Eucaristia faz de todos nós Corpo de Cristo. Daí o interesse da
primitiva Igreja em que, na Eucaristia, todos comungassem do mesmo pão partido,
com a finalidade de fazer visível essa unidade de todos.
Ao dizer “tomai e comei, isto é meu corpo”,
Jesus vem ao nosso encontro como alimento; não vive para impor-se sobre os
outros ou explorá-los, mas, pelo contrário, para oferecer sua vida em forma de
alimento, a fim de que todos se alimentem e cresçam com Sua vida.
Tudo isto se expressa e se oferece em
contexto de refeição entre
amigos(as): não exige obediência,
não impõe sua verdade, não se eleva acima dos outros, mas, em gesto de
solidariedade suprema, se atreve a oferecer-lhes seu próprio corpo,
convidando-os a partilhar o pão. Este oferecimento de Jesus só tem sentido para
aqueles que interpretam o corpo messiânico, como fonte de humanidade dialogal,
gratuita, expansiva…
Assim
fizeram seus(suas) seguidores(as): após a Ressurreição, Jesus foi “reconhecido ao partir o pão”; foi reconhecido não porque estava no templo ou
ensinava na sinagoga, mas porque partia o pão nas casas.
Por
isso, no primeiro dia da semana, reuniam-se todos nas casas, oravam juntos,
recordavam a mensagem de Jesus, comiam o pão, bebiam o vinho e a Vida
ressuscitava. A isso chamavam, ‘ceia do Senhor” ou “fração
do pão”. Tudo era muito simples
e despojado.
Segundo os relatos dos Evangelhos, durante sua
vida pública, Jesus transitou por muitas refeições, propôs a grande mesa da
inclusão e, para culminar, organizou com seus amigos mais próximos uma ceia de
despedida e de esperança. Ali, ao partir o pão e passar o cálice, pediu que se
recordasse dele toda vez que comessem ou bebessem juntos, reavivando a
esperança de construir o mundo que todos esperavam. Eles se transfigurariam e o
mundo se transformaria em Comunhão toda vez que este gesto fosse repetido.
Para
isso, é preciso recuperar o lugar e o sentido da Eucaristia, para que não seja um rito puramente cultual. Para
muitos cristãos, ela não é mais que uma obrigação e um peso que, se pudessem,
tirariam de cima deles. A Eucaristia acabou se convertendo em uma cerimônia
rotineira, que demonstra a falta absoluta de convicção e compromisso. A
Eucaristia era, para as primeiras comunidades cristãs, o ato mais subversivo
que podemos imaginar. Os cristãos que a celebravam se sentiam comprometidos a
viver o que o sacramento significava. Eram conscientes de que recordavam o que
Jesus tinha sido durante sua vida e se comprometiam a viver como Ele viveu.
Séculos
depois, a simples refeição foi se complicando. A casa se converteu em
templo, a refeição em “sacrifício”, a mesa em altar, o convite em obrigação, o
rito em pompa, a partilha em exclusão…
A
festa de “Corpus Christi” pode ser
ocasião privilegiada para voltarmos ao mais simples e pleno, para além dos
cânones, rubricas e indumentárias que não tem nada a ver com Jesus.
Basta
nos reunir em um lugar qualquer, para recordar Jesus, compartilhar sua palavra,
tomar o pão e o vinho, ressuscitar a esperança e alimentar o sonho do Reino.
Essa
é a Missa verdadeira, a verdadeira missão.
Texto
bíblico:
Lc 9,11-17
Na oração:
Na sua comunidade, a
celebração eucarística gera maior amor e compromisso em favor dos mais pobres
ou se limita a ser um simples rito religioso obrigatório?
– Quais iniciativas
concretas sua comunidade poderia fazer para que a participação na Eucaristia
seja mais ativa e dinâmica?
– Sendo constituída por seguidores(as)
de Jesus, como sua comunidade poderia se comprometer mais para levar aos
outros o pão cotidiano, o pão do amor e da esperança, o pão do evangelho do
Reino?
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ