“Paz na terra aos homens que o Senhor
ama!” (Lc 2,14)
Novamente nos
encontramos abrindo um Ano Novo: desejado, esperado, buscado…; estreamos e recomeçamos
um novo tempo; ocasião privilegiada para aprofundar o sentido do tempo, no qual
se desenrola nossa existência. Não podemos fazer a “travessia” em direção ao
Novo Ano sem fazer uma reflexão sobre nós mesmos e examinar como estamos
fazendo uso de algo tão importante e tão passageiro como o tempo.
No texto bíblico,
encontramos duas palavras gregas que traduzimos por “tempo”, mas que tem um
significado muito diferenciado.
“Chronos” é o tempo
astronômico que se refere à passagem das horas, dias e anos. Em princípio, é o
que estamos celebrando hoje. Trata-se de um tempo que absorve, devora, desgasta, esgota…; ele se torna cada
vez mais veloz, fugaz, estressante… Tempo de excessos, com a marca da
ansiedade e do estres; por isso mesmo, gerador de conflitos e tensões.
Com
isso, a existência inteira faz-se maquinal e rotineira:
é a soma das horas, dos dias, dos anos. Marcados
por tradições e hábitos, dialogamos com o possível, o já esperado, o já
testado, o “sempre fizemos assim”…
Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores,
pois tememos nos perder na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo que estas estejam velhas e
desfocadas e as perguntas são
silenciadas. Vivemos restritos ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Um tempo assim só é habitado pelo “ego”,
não há lugar para o outro. Também Deus não consegue entrar nesses “tempos
apertados”.
Aqui, a paz
tão desejada, não encontra terreno propício para se tornar realidade.
Outro termo grego
referente ao tempo é “Kairós”: este é o tempo humano; é o tempo oportuno,
carregado da presença d’Aquele que é o “Senhor dos tempos”.
Trata-se do tempo que
nos é dado como dom e como oportunidade para ativar todos os nossos recursos
internos. É o tempo da interioridade, de
crescimento no ser. Viver o “kairós” significa sentir o desejo do retorno à
espontaneidade, alimentar a aventura na descoberta de um mundo diferente,
ativar o impulso à transcendência, proporcionar um clima favorável à paz como
dimensão plenificante da existência humana.
Viver
o “kairós” nos faz tomar consciência de que nos encontramos diante de uma
grande carência existencial e que os anjos, na noite do Natal, souberam
proclamar aos pastores e à toda humanidade: a presença da Paz. Eles revelaram o
significado daquela Noite Santa: o céu e a terra se reconciliam, porque Deus
faz chegar a paz e a salvação a todos os seres humanos. A Criação inteira
celebra a soberana Bondade e o amoroso Coração do Criador, sendo, portanto, uma
celebração da alegria e da paz.
Felizes
aqueles(as) que, na Gruta de Belém, se mostram sedentos de paz e justiça, e
despertam dentro de si uma fome crescente para tornar realidade a igualdade e
dignidade de todo ser humano!
Cremos
na paz do coração e no empenho por deixá-la transparecer no mundo em que
vivemos, tão carente de pacificadores.
Paz,
um bem escasso, mas tão precioso que é sempre desejado e buscado, para que a
vida se torne um pouco mais plena e com sentido: paz interior, paz na família,
paz nas relações de trabalho, paz na ação política e paz entre os povos.
Muitos se perguntam para
onde vai nosso mundo, surpreendidos e preocupados pelo crescimento de uma
violência desconcertante. Em muitos países triunfam líderes populistas,
manejados por forças ocultas sem escrúpulos e marcados por discursos
intolerantes, preconceituosos e julgamentos moralistas; a corrupção vai
lançando raízes em todos os ambientes; os conflitos e as rupturas se acentuam;
a Igreja católica é sacudida por uma grande crise de credibilidade; o sistema
de valores e conhecimentos está mudando profundamente. Vivemos um momento de um
grande colapso civilizatório: uma metamorfose da sociedade que afeta todos os
aspectos da vida, pessoal e coletiva, de toda a humanidade. Trata-se, pois, de
uma crise global, embora às vezes possa parecer local ou inclusive pessoal.
Tudo isso nos inquieta, nos tira a paz.
Em virtude dessa brutal situação de
violência, observa-se em toda parte um grande clamor social pela paz. Esse
clamor das multidões está nas ruas, nas grandes passeatas pela paz, nas redes
sociais e está no desejo mais profundo de cada um de nós.
Infelizmente,
todos os dias aparecem, nos meios de comunicação, mais motivações para a
violência do que razões para a paz. Entretanto, precisamos afirmar: “não fomos
feitos para a violência”; a humanidade não é naturalmente inclinada à
violência. Nosso coração é habitado por um desejo profundo de paz: “Felizes os que promovem a paz!” (Mt
5,9)
Na raiz bíblica do termo “shalom” (paz) está a ideia de
“algo completo, inteiro”, “estar terminado”.
Paz significa o que é
integral, o que plenifica a vida. Shalom é vida em expansão, na presença de
Deus.
Portanto, quem vive no
“Shalom” está com saúde, sente-se bem, encontra-se em um estado de plenitude.
Quando alguém deseja
“Shalom” a outro é como se dissesse: “Que
Deus te conceda todo o necessário para viver em amizade com Ele, em
fraternidade com o próximo e calma dentro de ti mesmo”.
A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência
está do lado da falta, da carência, do incompleto. Paz reflete harmonia consigo, boas
relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os
relacionamentos, contamina a convivência, quebra as relações, exclui os mais
fracos…; há uma paz falsa que é a injustiça estabelecida, porque a verdadeira
paz está ligada à justiça. Não há paz sem liberdade, não há paz sem verdade.
Em Belém,
somos pacificados de nossas ansiedades e pressas, de nossa sede de poder e de
acumular mais; e, se permanecemos em silêncio ali, diante do menino deitado no
presépio, brotará em nós um desejo profundo de sermos mais humanos, de sermos aquilo que já somos no
rosto aberto daquela Criança; ao mesmo tempo, brotará também um desejo
de venerar cada ser humano, de contemplá-lo em seu interior, esse lugar ainda
não profanado em cada pessoa, o lugar de sua infância e de sua paz.
Ao nos reconhecermos
nessa morada interior, podemos receber a paz cantada pelos anjos diante dos
pastores; não só isso: descobrimos que, na essência, “somos paz”. Não é a “paz
do mundo”, que sempre é oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas
as situações da vida, porque estamos enraizados naquilo que realmente somos.
A
paz natalina é a paz que somos, no nosso “eu” mais profundo.
A
paz não é “algo”, nem vem “de fora”, nem é condicionada. A Paz da qual os anjos
proclamam é a unidade com nossa interioridade: é outro nome de nossa verdadeira
identidade.
E
diante dessa manifestação, o que nos resta? A atitude de Maria: acolher todas as coisas, “guardá-las”, “meditando-as
no coração”. Ir mais além dos conceitos e das
palavras e, desse modo, descansar –
admirados,
agradecidos, irmanados – no Mistério e deixar-nos conduzir por Ele.
“Meditar as coisas no coração” significa ativar o “olhar
contemplativo”, presente em todos nós
e
que se manifesta quando cessamos nosso palavreado crônico. Serenados(as)
interiormente, seremos presenteados com o dom de permanecer no presente, onde
tudo está bem, onde tudo flui mansamente e na santa paz.
Texto bíblico: Lc. 2,16-21
Na oração:
Que a “entrada” neste Novo
Ano nos faça descer em direção à nossa
humanidade.
Ali, nas grutas de nosso interior,
recanto de paz, uma infância divina nos espera… e nos enche de alegria. Ditosos
somos nós se podemos saborear e abraçar a paz do coração que o Menino Jesus traz e oferecê-la largamente
para que outros possam também receber seu dom: sem defesas, sem preços, sem
temores.
Que nosso coração, apesar de tudo, continue pulsando em paz,
na Paz que tudo cria e transforma!
– Como seguidores(as) do Menino Deus, devemos criar politica-mente
outro tipo de sociedade fundada nas relações justas entre todos, com a
natureza, com a Mãe Terra e com o Todo que nos sustenta. Então florescerá a paz
que a tradição ética definiu como “a obra de justiça”.
– Que 2020 seja, para todos, um Kairós carregado daquela Paz
que brota da Gruta de Belém.
Pe. Adroaldo Palaoro, sj
Foto: https://bit.ly/2MER8z9