A porta que dá acesso à vida

Data:

“Fazei
todo esforço possível para entrar pela porta estreita”
(Lc 13,24)

 


Segundo o relato de Lucas, um
desconhecido interrompe o caminho de Jesus e lhe faz uma pergunta, tão
frequente naquela sociedade religiosa: “Senhor,
é verdade que são poucos os que se salvam?”

Tal pergunta, no fundo, é uma
ofensa ao amor de Deus e, por detrás dela, já percebemos uma falsa imagem d’Ele,
como se Deus fosse aquele que põe travas à salvação e não quer que este dom
chegue a todos.

Por
isso, Jesus não responde diretamente à pergunta. O importante não é saber
quantos se salvarão; não lhe interessa especular sobre este tipo de questões
estéreis, mas vai diretamente ao essencial e decisivo: viver com atitude lúcida
e responsável para acolher a salvação do Deus que é suma bondade e quer que
todos se salvem. Quem está disperso e distraído não está em sintonia com o dom
da salvação, perde a oportunidade de acolhê-la e deixar-se inspirar por ela.
Por isso, Jesus insiste: “Fazei todo
esforço possível para
entrar pela
porta estreita”.

Para entender corretamente o
apelo a “entrar pela porta estreita”,
é preciso recordar as palavras de Jesus encontradas no evangelho de João: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será
salvo”
(10,9). Entrar pela “porta estreita” é fazer caminho com Jesus,
aprender a viver como Ele, revestir-se do modo de ser e de viver d’Ele… O que
Jesus pede não é rigorismo legalista, mas amor radical a Deus e aos outros.

Por isso, seu chamado é fonte
de exigência e não de angústia. Jesus é uma porta sempre aberta, para que, ao
passar por ela, vivamos em plenitude. Ninguém pode fechá-la; só não conseguimos
atravessá-la quando nos fechamos em nosso legalismo e moralismo.

Ao
longo da história da espiritualidade cristã esta frase – “esforçai-vos por entrar pela porta estreita” – foi entendida como
“sacrifício”, “mortificação”, “renúncia”… Uma leitura mais serena destas
palavras, no entanto, nos faz ver que não se pode confundir “porta estreita”
com “conquista de méritos e recompensas”, inflando um “ego religioso e
perfeccionista”.

Não conhecemos nenhum mestre espiritual que tenha dito que a porta que
conduz à Vida seja cômoda ou ampla. Espaçosa e plena é a própria Vida, mas a
porta é estreita. A rigor, é tão estreita, que só pode ultrapassá-la quem está
disposto a esvaziar sua pequena identidade egóica.

Sabemos
que, um “ego inflado”, compulsivo, cheio de si, obeso…não tem como passar
pela “porta
estreita”.
Para entrar por ela é preciso despojar-se de tudo aquilo que
foi sendo acumulado ao longo da vida: posses, honras, consumismo, vaidades,
poder, prestígio… “Entrar pela porta
estreita”
é desapropriação do ego, é desinflar-se, deixar transparecer a
verdadeira identidade do próprio ser.

Para
fazer o caminho com Jesus não se pode ter excesso de gorduras nas ideias, no
coração, nas atitudes… Ser peregrino com Ele supõe leveza, flexibilidade,
mobilidade…

As
portas do Reino estão sempre abertas; e estão abertas para todos. Mas, muitos
“egos” vivem cheios de si mesmos e ocupam todo o espaço da entrada da porta.
Eles não entram, porque estão bloqueando a porta, mas também não deixam entrar
aqueles que querem passar por ela.

Os
“egos inflados” acreditam estar dentro, quando na realidade estão fora;
acreditam ser donos da porta; não se atrevem a entrar por medo à verdade e
preferem ter um pé dentro e outro fora.

Numa perspectiva
psicológica, conhecemos a imagem da porta
nos nossos sonhos. Quando sonhamos com uma porta trancada, isso significa que
perdemos o contato com nosso interior, com nosso coração, com nossa essência e
vivemos apenas na exterioridade.

No evangelho
deste domingo, as pessoas que o dono da casa afirma não conhecer, vivem apenas
na superfície de si mesmas. Elas não têm uma vida ruim, mas tudo o que fazem
acontece apenas no mundo exterior e não tem nenhuma relação com seu coração.
Até mesmo sua fé é meramente exterior. Elas vão à Igreja, são rígidas com as
leis morais e cumprem com os deveres religiosos. Mas ao fazer isso não entram
em contato com seu coração. Elas até se lembram que seguem Jesus, dizem ter
comido e bebido com ele e ter ouvido seu ensinamento. Mas seu coração está
fechado. A proposta de vida plena, apresentada por Jesus, não desperta
ressonância no “eu profundo” delas.

O
dono da casa ao dizer –“não sei quem
sois” –
simplesmente está afirmando que tais pessoas não se parecem em nada
com Ele.

A
dureza destas palavras ressoa
como um
chamado realista a nos despertar para reconhecer-nos na Vida. Quem não entra em
contato com sua dimensão mais profunda, não participa da vida, aquela revelada
pelo  “Reino do Pai”. Afinal, “o Reino de Deus está dentro de vós” Lc
17,21)

Portanto, a
parábola deste domingo nos convida a fazer a travessia do exterior para o
interior, restabelecendo o contato com nosso coração. Na verdade, a porta
estreita conduz a um horizonte mais amplo; atravessá-la significa alcançar a
harmonia conosco e fazer emergir o que é mais nobre em nós: recursos, dons,
criatividade… Se nos contentarmos em seguir o modo de viver dos outros, não
viveremos a verdade de nós mesmos. Nosso processo de humanização só poderá se
ampliar se encontrarmos nossa porta pessoal e passarmos por ela.

Indubitavelmente, passar pela “porta estreita” significa uma experiência
de “morte” àquilo que não somos para que possa viver o que somos. Só assim
nossa vida, ao atravessar a porta, se expandirá.

E essa morte não acontece sem dor: ao ego lhe dói morrer a seus apegos,
suas gratificações, suas necessidades, suas expectativas; ao ego lhe dói fazer
uma “lipoaspiração” de suas gorduras; ao ego lhe dói deixar o que lhe dá uma
sensação de segurança. Por isso, quando ele se sente frustrado, começam a
aparecer sensações degradáveis e uma série de mecanismos de defesa entram em
ação.

Com sua mensagem
forte, Jesus nos convida a procurar e encontrar a chave para abrir a porta da
casa do nosso “eu verdadeiro”, a entrar em contato com nosso coração,
o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa
personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais,
as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as
idéias-força, os dinamismos da vida… O “tesouro do ser”, ainda
que pareça esquecido, permanece armazenado e pode tornar-se a força que orienta
toda a vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação…

O
símbolo da “porta” não se define em si
como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o
interstício entre dois espaços, é o que divide dois modos de ser e viver. “Passar
a porta”
significa ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do
“fora do normal”…

O “outro
lado”
é um espaço não conhecido, é um lugar ainda não explorado.

Somos “seres de travessia”; é próprio do
ser humano ousar, romper, ir além… Para isso é preciso arriscar para viver
uma experiência transformadora, aproximando-nos do diferente: abrir portas de
mundos que desconhecemos; viver situações às quais não estávamos acostumados;
sentir coisas que nunca havíamos sentido; conhecer segredos que tornarão mais
autêntica nossa vida…

Texto bíblico:  Lc 13,22-30

 

Na oração:

 

A porta estreita
que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e
atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. A porta
espaçosa representa a que todos usam; a porta es-treita é a passagem original
que Deus preparou para cada um de nós: ela aponta para nossa identidade única e
é por ela que Deus acessa ao nosso interior. É nas fendas de nossos limites e
fragilidades que Deus encontra mais facilidade para entrar em nosso coração e
não pela porta da perfeição.

 

– A “porta” da
sua vida dá acesso ao novo e diferente ou está travada pelo medo e preconceito?


Pe. Adroaldo Palaoro, sj

Foto: https://bit.ly/2H9jsa3


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