Gratuidade e generosidade, as atitudes do coração

Data:

“Estes
últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o
cansaço e o calor o dia inteiro”
(Mt 20,12)

 

A liturgia
deste domingo nos faz encontrar com uma parábola simples, mas reveladora de uma
força impactante. Chega até nós como uma Boa Notícia que nos surpreende, nos
desloca e pode até provocar em nós algumas reações controvertidas, inclusive resistências.

A parábola
começa como muitas outras:
“O Reino dos Céus é como a história do patrão…”. Ela vai desvelando o
modo provocativo de agir deste personagem, o mistério mais profundo de seu ser,
a profundidade e a coerência de sua bondade e de seu amor. Diante deste
mistério não podemos permanecer indiferentes.

A parábola nos coloca diante de um
senhor que sai de sua casa e vai, pessoalmente, buscar trabalhadores para sua
vinha, em diferentes horários do dia. A seguir vem o núcleo do relato, o fato
que muda o tom e provoca reações diferentes. No fim do dia paga a todos o mesmo
valor que lhes havia prometido. E, o mais estranho, é que começa a pagar pelos
últimos. Tal atitude provoca reações de protesto nos ouvintes.

O dono da vinha parece estar sendo
muito injusto. Os primeiros que foram chamados trabalharam várias horas a fio e
aturaram o calor do dia. Como, então, o senhor pode dar o mesmo salário àqueles
que trabalharam apenas uma hora? Parece que estamos diante de uma tremenda
“injustiça”.

 

Vivemos a
cultura da meritocracia; cada um deve receber segundo seu esforço
ou suas conquistas.

Quanta
importância é dada aos méritos: na vida, na sociedade, na educação, na
religião! Para isso existem as homenagens, premiações, reconhecimentos
públicos, livros comemorativos, nomeações honoríficas…

Escutamos
com frequência:
“mereceu
pelo que fez!”; “depois de tanto esforço realizado, era justo que
ganhasse o
prêmio!”

Cremos que faz parte da justiça
“ganhar quem merece, que trabalhou mais,
quem se
esforçou
mais…”

Inclusive, quando fazemos elogio a uma pessoa que faleceu, destacamos sempre
seus méritos: o que ela fez, a qualidade de suas obras, o prestígio que foi
conquistando, o trabalho que realizou…

A ideia do mérito perpassa todas as
dimensões da existência, incluída a dimensão religiosa, onde dá lugar a uma
“religião mercantilista”, que conduz facilmente ao farisaísmo: o fiel não só
presume de suas boas obras, mas se considera “justo”, acima dos outros, e merecedor
dos favores divinos (ou com “direitos” diante de Deus). É a “religião do ego”.
Porque não é justo que
“os últimos
sejam os primeiros”.

 

O evangelho deste domingo revela-se desconcertante, porque
rompe o sistema vigente da retribuição dos méritos. O Senhor do Universo não é “deus
mesquinho” que estabelecer uma “contabilidade” para premiar ou retribuir seus
filhos e filhas.
“Os primeiros serão os últimos e os
últimos serão os primeiros”,
afirma
Jesus com contundência. “Trabalhar na vinha do Senhor” não é questão de
quantidade, mas de qualidade. Já é um privilégio o fato de sermos chamados a
colaborar e devemos aproveitar da oportunidade que nos é oferecida. Aqui não há
lugar para comparação, competição e inveja.

Os trabalhadores da primeira hora revelam
que sua vida tem um sentido interesseiro. Eles trabalham e, ao final do dia,
recebem um salário adequado: o pagamento combinado de um denário, que na época
correspondia ao preço justo de uma diária. Mas, assim que começam a se
comparar com aqueles que trabalharam menos do que eles, ficam insatisfeitos e
pensam:
“teria sido mais
fácil se tivéssemos começado a trabalhar mais tarde”.
Assim confessam que, para eles, o
trabalho significa um fardo; e o calor, sofrimento.

 

Há um outro
aspecto interessante revelado pela mesma parábola. Aqueles de primeira hora que
se queixam do mesmo tratamento dado a todos pelo senhor, mostram-se incapazes
de compreender a atitude do dono da vinha. Eles não têm direito a exigir, porque
foi combinado um “denário” pela diária, mas se sentem mal que os últimos
recebam o mesmo tratamento que eles.

Com esta
parábola o evangelho pretende fazer saltar pelos ares a ideia de um Deus que
reparte seus favores segundo o grau de fidelidade às suas leis, ou pior ainda,
segundo seu capricho. Salta à vista a novidade da mensagem de Jesus, uma
novidade que pode ser resumida numa palavra: gratuidade.

Infelizmente, continuamos cultuando
a um “deus mesquinho” e que nos interessava manter. Na realidade, nada temos
que “esperar” de Deus; Ele já nos deu tudo desde o princípio; basta nos abrir
ao seu dom total, que é já uma realidade, embora ainda não tenhamos descoberto
isto.

A mensagem da parábola é evangelho,
boa notícia: Deus é igual para todos: amor, dom infinito. Devemos proclamar
isso para todos, sem exceção. Não podemos ter a pretensão de aplicar a Deus
nosso conceito de “justiça religiosa interesseira” que consiste em sermos bons
para que Deus nos premie ou, pelo menos, para que não nos castigue.

No fundo, o que a parábola deixa transparecer é a
queixa daqueles que se sentem “injustiçados” porque foram chamados ao
amanhecer e receberam a mesmo valor daqueles que foram chamados ao longo do
dia.

É a queixa que brota da comparação com os outros e que
expressa nossa mentalidade estreita e nossos cálculos mesquinhos. Tal atitude
nos revela que não conhecemos o nosso Deus. Relacionamo-nos com Ele como o
assalariado com seu empregador, ou seja, mais trabalho, mais soldo.

A queixa também revela um pecado de
raiz, escondido em todos nós: a inveja.

Sentimos inveja porque os outros
têm algo que não temos, sentimo-nos prejudicadas por Deus e pelo destino.
Quanto mais nos comparamos com outros, mais insatisfeitos ficamos. Sentimo-nos
injustiçados e bloqueamos nossa própria vida.

Poucos sentimentos humanos causam
tanto sofrimento e interferências nas relações entre as pessoas como a inveja.
Esta emoção negativa só serve para produzir lamúrias, queixas, amarguras,
naquele que é invejoso, e provoca desconcerto e incompreensão naquele que é
invejado.

A inveja nos corrói por dentro, nos
morde, nos faz dobrar sobre nós mesmos. E, ao mesmo tempo, coloca uma barreira
entre nós e aqueles a quem invejamos. Assim, nos convertemos em rivais, em
inimigos, em objeto de menosprezo. Na realidade, o objeto invejado é o de
menos. Pode ser o trabalho, um bem material, uma relação pessoal, uma
conquista… O terrível é como a inveja mata a relação. E como vamos nos
fechando em um poço de amarguras e queixas, esquecemo-nos de todos os dons e
benefícios que temos.

 

Que atitudes
sadias
devemos assumir para não deixar que a inveja e a comparação
determinem nossa vida?

Frente à
comparação e à inveja, talvez o mais urgente seria despertar a gratidão,
o olhar lúcido e consciente à nossa própria vida. Aprender a valorizar os
muitos dons que temos, os benefícios que continuamente recebemos e que são
oportunidades que nem todos têm. Aprender a reconhecer e celebrar os dons
próprios, os recursos originais, as conquistas pessoais…

Uma outra
atitude seria a de ativar a alegria pelo bem alheio, aprender a vibrar com as
conquistas dos outros.

Alegrar-se
com a alegria do outro é a expressão máxima de maturidade, de descentramento,
de gratuidade.

A gratidão nos revela que
tudo o que somos ou temos foi dado por Deus e recebido por nós; tudo foi e é
graça, como se lê na carta de Paulo:
“em
que você é mais que os outros? O que é que você possui que não
tenha
recebido?”
(1Cor
4,7). O fato mesmo de “ir à vinha na primeira hora” já é um presente, um
privilégio, uma oportunidade a ser vivida com intensidade, em comunhão com os
outros.

Quando compreendemos a verdade do
que somos, ou seja, plenitude de vida, deixamos de nos apropriar dos
resultados; atuamos sem a ganância do fruto; nossas ações nascem e fluem a
partir da compreensão do que somos; o orgulho no êxito e a culpa no fracasso se
esvaziam; acabam a comparação, o juízo e a desqualificação dos outros.

 

Texto bíblico: Mt
20,1-16

 

Na
oração:
Alimente
uma “memória sadia”, reconhecendo 
que tudo é Graça, “de graça”, que você é uma
pessoa “agraciada”, “cheia de graça”…

– O agradecimento é, para S. Inácio, a
experiência humana que mais pura e decididamente mobiliza a generosidade da
pessoa;
a gratidão é a mais agradável das virtudes: que virtude mais leve,
alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se
aproxima da caridade, que seria como
a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional.
Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.

– Viva em contínua
“ação de graças”.


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