“...estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” (Jo 20,19)
O contexto do evangelho deste domingo é de obscuridade (“ao anoitecer”) e de medo (“com as portas fechadas”). Os discípulos têm a sensação de estarem sufocados, como numa prisão, na qual a inquietude, a insegurança, a confusão, o vazio, a ansiedade e a tristeza são inevitáveis. É nesse ambiente de morte que o Ressuscitado se faz presente e tudo se transforma: chega a paz e, com ela, a alegria e o consolo.
A
ressurreição de Jesus é também uma vitória solidária; Ele vai ressuscitando
seus amigos e amigas, reconstruindo vidas feridas pelo fracasso e pela dor,
abrindo novo horizonte de sentido e impulsionando-os a prolongarem a Sua
missão.
Neste
relato catequético de João, que se prolonga com a cena de Tomé, há referência a
alguns dados significativos. As duas aparições acontecem “no primeiro dia
da semana”;
o relato está simplesmente dizendo ao leitor duas coisas: que a ressurreição é
uma “nova Criação”, e que as aparições “acontecem” no domingo, na
celebração comunitária da eucaristia ou “fração do pão”.
Com isso, o
relato está nos convidando a descobrir o Ressuscitado na refeição comunitária
compartilhada, onde é feita a memória das palavras e atos do Jesus histórico.
De fato, Tomé não “vê o Senhor” porque estava ausente, fora da comunidade.
Por outra parte, o Ressuscitado ao
se colocar no meio dos seus amigos, os convoca à missão e os envia para que
prolonguem seu modo original de se fazer presente entre as pessoas, durante a
vida pública: “Como o Pai me enviou, também eu vos
envio”. O centro
da missão é a de comunicar e favorecer a vida, já que Ele veio “para que todos tenham vida, e a tenham em abundância”
(Jo 10,10). A missão confiada não tem nada a ver com fazer proselitismo ou
comunicar uma nova religião. É algo muito mais profundo, gratuito e
descentrado. Sentir-se “enviado” é, simplesmente, reconhecer-se como “canal”
através do qual a Vida flui e se expressa; é possibilitar que todos possam
viver já como ressuscitados.
Mas Jesus sabe que seus
discípulos são frágeis. Mais de uma vez ficou surpreso com a fé tão pequena
deles. Precisam de seu próprio Espírito para cumprir a missão. O leitor do evangelho já
sabe que uma das grandes promessas de Jesus foi o dom do Espírito. Por isso, Ele se dispõe a fazer
com os discípulos um gesto muito especial. Não lhes impõe suas mãos nem os
abençoa, como fazia com os enfermos e os pequenos; “sopra sobre eles” e lhes diz: “recebei o Espírito Santo”.
O gesto de Jesus tem uma força
que nem sempre conseguimos captar. O verbo “soprar”, usado por João, é o mesmo
que encontramos em Gen 2,7. Segundo a tradição bíblica, Deus modelou o ser
humano de barro e logo soprou sobre ele seu “alento de vida”; e aquele “barro”
se tornou um ser “vivente”.
Isso
é o ser humano: um pouco de barro, mas, ao mesmo tempo, portador da “Ruah de
Deus” (Espírito). Agora Jesus lhes comunica o Espírito da verdadeira Vida.
Trata-se da nova criação do ser humano. Essa nova Vida é a capacidade de amar
como Jesus ama. O Espírito é o critério para discernir as atitudes que brotam
dessa Vida. Jesus
“desperta” seus discípulos para que se façam conscientes do dinamismo e da
força do Espírito que os re-cria. É este Espírito que “rompe” o que está
fechado, que derruba o que aprisiona, que mobiliza quem está paralisado.
Assim
somos todos, seguidores(as) de Jesus: frágeis e de fé pequena, cristãos de
barro, comunidades de argila... Só o Espírito de Deus nos converte em
comunidade viva. Onde este Espírito não é acolhido, tudo permanece morto e
causa danos a todos, pois impede atualizar sua presença viva entre nós.
Atualizando este texto, podemos
dizer que o Espírito Santo hoje está “fechando muitas portas” de um tipo de
sociedade, de economia, de política, de templos... que não geram vida, mas
discriminação, violência, ódio e intolerância. O contexto tecnocrático
pós-moderno e o sistema político-econômico vigente provocam mortes e vítimas.
Não nos parece estranho que o Espírito feche portas e que isto gera em nós uma
sensação de fracasso, de incertezas sobre o futuro, de caos e confusão.
Mas
o Espírito, soprado pelo Ressuscitado, está “abrindo para nós outras portas”:
um outro mundo possível, com uma economia solidária, com prioridade dos pobres
e descartados da sociedade, um mundo mais ecológico, mais simples e
participativo, que não invista em armas, mas em saúde e trabalho, um mundo mais
interconectado e pacífico, mais próximo do projeto do Reino de Deus.
Para
nós cristãos, o Espírito também nos abre uma porta para uma Igreja menos
clerical e mais sinodal, a uma vida cristã com maior participação comunitária
de todo o Povo de Deus, não fechado nos templos cumprindo práticas religiosas
alienadas, mas formando uma “Igreja em saída”, mais fermento que cimento. Não
tentemos abrir as portas que o Espírito já fechou!
Assim,
a Páscoa se torna Pentecostes. Mas isto não é algo mágico pois pede
a nossa colaboração, nossa criatividade, iniciativa e conversão para construir
entre todos um mundo diferente, solidário e justo, para transfigurar esta
realidade e abri-la à nova Terra, a uma Vida sem fim, o Reinado de Deus.
Seremos
capazes de discernir hoje, nestas portas que se fecham e se abrem, um novo
sinal dos tempos, uma sempre nova e surpreendente ação do Espírito do Ressuscitado?
O mundo, aparentemente,
continua igual, parece que não aconteceu nada relevante. A Ressurreição é
também gestada na simplicidade do cotidiano e no extraordinário do ordinário.
As mesmas “marcas” da Encarnação de Jesus, como as que estiveram presentes em
sua vida e em sua paixão, continuam no acontecimento último de sua ressurreição
gloriosa: o grão de trigo, o fermento na massa, a semente de mostarda, a moeda
perdida e encontrada, a ovelha nos ombros, o semeador, a pequena esmola da
viúva, os lírios do campo...; aí está a força do Vivente que não obriga, não se
impõe, nem quebra, nem rompe; continua em meio a nós, na casa, na família, no
povo, nos caminhos, lagos, esquinas da vida... As contas estão claras, na
simplicidade e na humildade extrema, a tumba não pode reter nem acabar com o
amor de Deus que se manifestou em Jesus de Nazaré. Já nada poderá nos separar
desse amor, nem mesmo a morte que foi vencida e ultimada em uma vida que nunca
acaba porque está cheia de plenitude, vida gloriosa e eterna.
Esta
experiência de graça pascal pertence a toda comunidade cristã; não está
reservada aos “doze” ou a alguns “iniciados”; todos com a mesma experiência; to-dos
com a mesma missão. Falamos da grande comunida-de de seguidores(as) que escutam
a Palavra e recebem o “sopro” de Jesus. A Igreja inteira, a partir do dom
pascal de Cristo, é sinal e princípio de paz, de perdão e de conso-lo sobre a
terra. Ali onde a paz e o perdão se expressam e se “fazem carne” numa
comunidade, está presente e se faz visível o Senhor Ressuscitado.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam
uma presença que acolha e uma palavra que os anime.
- Seja presença pacificadora e consoladora
junto a tantos que vivem nos “túmulos” do fracasso e da dor.
- Ative seus impulsos
de vida para que a Ressurreição seja um permanente “modo de viver”.