“Quem se apega à sua vida, perde-a” (Jo 12, 25)
O
percurso quaresmal está chegando ao seu cume; aproxima-se o desenlace final de
uma vida entregue em favor da vida. Jesus sente o clima pesado de rejeição por
parte das autoridades religiosas. Estamos no cap. 12 do quarto evangelho.
Depois da unção em Betânia e da entrada triunfal em Jerusalém, e como resposta
aos gregos que queriam vê-lo, João põe na boca de Jesus um pequeno discurso que
não responde nem aos gregos, nem a Felipe e André. Mais uma vez Jesus fala da Vida,
da sua vida; Ele tem plena consciência que não viveu em vão: viveu
des-centrado, investiu suas melhores energias vitais em favor de uma causa, sua
vida deixou transparecer um profundo sentido.
Compreendemos melhor o evangelho deste domingo se o
situamos no contexto da última viagem de Jesus a Jerusalém: nesta viagem se
entrelaçam a vida e a morte com muita força.
E, ao chegar a Jerusalém, proclama de novo o
triunfo da vida, como fizera durante sua itinerância pela Galiléia. Ele nos
revela esta verdade, nem sempre muito clara para nós: embora pareça que a vida
se decompõe como o grão de trigo, na realidade, o que acontece é uma eclosão de
sua fecundidade. Embora pareça que amar os outros e entregar a vida, dia após
dia, é uma perda, na realidade é o maior ganho, porque nossa limitada vida se
transforma numa vida plena, intensa, com sentido (eterna). Embora pareça que
pôr-se a serviço do Reino é perder a liberdade, na realidade significa investir
o melhor que há em nós, potencializando nossos recursos para investir numa
causa mobilizadora, que é a causa do mesmo Jesus. Embora estejamos tão
perturbados como Jesus, desejando que nos livre de qualquer processo que
conduza ao sofrimento e à cruz, há um horizonte de glorificação e plenitude.
Onde nos situamos neste confronto entre a vida e a morte?
A vida
e a morte não são inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs
inseparáveis.
Morre-se
ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer.
A vida
é o lento amadurecer da morte. Morre-se na vida, durante
a vida, na medida em que a morte é fruto maduro das opções de
toda a vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós
rondamos a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência cristã nos revela o caminho de uma morte
preparada ao longo da vida, porque a entende em relação com a vida e a vida em
relação com a morte. Vida sem morte é irresponsável; viver sem morrer é viver
menos. Tira a seriedade da vida.
Só assumida em liberdade e ativamente, a morte se humaniza.
Na fé, cristianiza-se.
A
consciência de nosso próprio fim nos leva a pensar num sentido para a
existência, para que não termine no vazio e no absurdo. Podemos afirmar, então,
que “a morte está na vida”.
Entre
os valores humanos fundamentais está o sentido.
A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é
fundamental na existência humana.
- Por que vivemos? Para que vivemos? Quanto vale
uma vida e o que vale na vida?
- Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira
preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões,
gestos,
lições, projetos, ideias e sentimentos?
Qual o sentido da vida? Pergunta inquietante
e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena
viver?”
Ninguém tem uma razão pela qual viver
se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer.
O ser humano tem necessidade de uma causa, de
canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, im-pulsos vitais e
recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita
apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa
paixão.
Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana,
precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um porquê pelo qual viver
pode tolerar praticamente qualquer como”.
Para Victor Frankl, fazemos a experiência do “sentido da vida”
quando respondemos aos questionamen-tos da situação concreta em que vivemos,
permitindo-nos a nós mesmos confiar em um “sentido último” que
podemos chamar ou não de Deus.
Ao perder o sentido de sua origem e
do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.
Portanto, o sentido da vida é algo que
experimentamos visceralmente, sem que saibamos explicar ou justificar. Não é
algo que se constrói, mas algo que nos ocorre de forma inesperada e não
preparada, como uma brisa suave que nos atinge, sem que saibamos de onde vem
nem para onde vai; é uma intensificação da vontade de viver a
ponto de nos dar coragem para morrer por aquela causa que dá à vida o seu
sentido.
É uma transformação de nossa visão de
nós mesmos e do mundo, na qual as coisas se integram como uma melodia; isso nos
faz sentir reconciliados com o universo ao nosso redor, possuídos por um
sentimento oceânico, sensação inefável de eternidade e infinitude, de comunhão
com algo que nos transcende, envolve e embala, como se fosse um útero materno
de dimensões cósmicas.
Por trás do ritmo acelerado e estressante dos nossos tempos, esconde-se
um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos
revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e
causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim
não encontram igualmente motiva-ções para viver intensamente. Segundo S.
Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.
Muitas
vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas,
nossos sonhos que nos inquietam... não encontram canais amplos para jorrar. E
então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade. “E a mediocridade não tem lugar na cosmovisão de
Inácio” (Pe. Kolvenbach).
Surge
então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a
criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo
que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso
possível.
“Viver a fundo” é não passar
pela superfície da vida, é não perder a capacidade de amar, de vibrar,
de buscar... Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem
potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes,
alcançar cumes distantes.
Inspirados
pelo evangelho deste domingo, somos convidados a tomar consciência de como
estamos gerenciando esta dinâmica: viver para nós mesmos (ego) ou entregar a
vida (oblação).
Enquanto o ego
for o centro, doar soa estranho; ele só se preocupa consigo, conquista,
executa, quer ser o melhor (“se outros perdem, eu ganho”) e é obeso por
natureza (ego inflado); devorador.
“Se
alguém quer me servir, siga-me...”.
“Diakonos” significa servir, mas por amor. É no serviço e no seguimento de
Jesus que as potencialidades de vida são ativadas.
Jesus convida a segui-lo no caminho
que acaba de traçar, ou seja, doar a vida a serviço da vida. Seguir Jesus é
entrar na esfera do divino, é deixar-nos conduzir pelo Espírito. Nossa vida só
se reveste de pleno sentido quando se põe a serviço da Vida maior. Participando
da morte de Jesus, podemos também fazer de nossa morte um ato de decisão, de
entrega, de oblação.
Texto
bíblico: Jo
12,20-33
Na oração: examine, à luz do coração misericordioso do Pai, o percurso quaresmal vivido; desvelar estas três dinâmicas: a da gratidão, a do perdão e a da compaixão.
Em que medida elas se fizeram presente ao
longo deste tempo litúrgico.
- São três atitudes que mobilizam o “melhor” que há em cada pessoa; três dinamismos que dão sentido à própria existência e abrem horizontes inspiradores; três forças que revelam a essência da vida cristã: identificação com Aquele que as viveu em plenitude.