“Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor” (Lc 2,22)
Celebramos, neste último domingo do ano, a
festa da Sagrada Família. Os textos da liturgia fazem referência a temas
familiares. A partir de uma visão cristã, a família revela sua missão
insubstituível: ser uma comunidade de amor, onde aqueles que a integram possam
se abrir aos demais com uma total sinceridade e confiança. As exortações de S.
Paulo à mansidão, à paciência, ao perdão e, sobretudo, ao amor, é o fundamento
para as famílias de nosso tempo.
O espaço familiar é tão essencial para o
amadurecimento e crescimento das pessoas que Deus escolheu a família de Nazaré como lugar de “humanização de seu Filho”. No
cotidiano do lar de Nazaré, Jesus deixou transparecer que a “Trindade é a Família fontal”; nela, todas as famílias devem buscar
inspiração.
De fato, Nazaré e a casa familiar foi para
Jesus uma parábola trinitária. José,
o artesão que lhe ensinou e o treinou para fazer suas mesmas obras, era o
símbolo vivente do Abbá. Maria era a
presença inspiradora, a que mantinha viva a chama do amor e da criatividade, a
que transformava a casa em lar e em seio fecundo. Era ela o ícone vivente do
Espírito. E Jesus, o aprendiz.
Foi na escola cotidiana da
família de Nazaré, que Jesus foi se humanizando: “Ele crescia em sabedoria, em
estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)
Nazaré nos revela o sentido do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida
tranquila, provinciana, não-escrita, de uma família simples e iluminada.
Essa
atenção à simplicidade do
cotidiano, à natureza da Galiléia, à mensagem que Deus esconde nos corações das
pessoas, nas coisas, nas horas…, é uma constante na vida e na família de Jesus.
Nazaré é o sinal da epifania de Deus
nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes
da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em todas as
casas.
O ritmo da sociedade atual e,
sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial, ao consumismo, nos
mantém muito distantes do ambiente familiar de Nazaré.
Estamos
mergulhados numa cultura onde, normalmente, o cotidiano é rotineiro, convencional, repetitivo, e, não raro,
carregado de desencanto. Fechado em si mesmo o cotidiano torna-se pesado, desinteressado e frustrado. Geralmente
não nos damos conta de que estamos envolvidos pelo cotidiano.
No entanto, as grandes histórias são
tecidas na trama do cotidiano; os “tempos” de Deus não são os da eficácia, da
produção, do ritmo estressante... Também são os tempos do silêncio, da rotina
inspirada e da aprendizagem silenciosa. Todo crescimento pessoal demanda
previamente tempo, ritmo, reconhecimento e aceitação da própria verdade,
sólidos fundamentos sobre os quais podemos construir nossa pessoa.
É a “mística”
que nos desperta da letargia do cotidiano.
E despertos, descobrimos que o cotidiano
guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que
sempre podem conferir novo sentido
e brilho à
vida. O Reino também se revela no
pequeno, no anônimo, no despojamento.
É o cotidiano que nos prepara para as
grandes decisões. É a fidelidade ao cotidiano que possibilita a transformação da realidade; é o
cotidiano que abre espaço à ação do Espírito para que Ele
nos expanda, nos alargue e nos impulsione em direção a uma nova vida.
O texto de Lucas deste domingo nos revela que junto às crianças,
protagonistas do tempo natalino, estão os idosos. O acontecimento da apresentação
de Jesus no templo nos situa diante do encontro de gerações: as
crianças e os anciãos. Crianças e idosos constroem o futuro dos povos. As
crianças porque levarão a história para frente, os anciãos porque transmitem a
experiência e a sabedoria de suas vidas.
É
interessante o que Lucas indica: dois anciãos do povo tinham passado a vida
inteira esperando e com os olhos bem abertos para descobrir o menor indício de
que se aproximava a libertação para o povo. Não causa estranheza que Lucas
mostra Maria e José assombrados diante daquilo que se dizia do menino.
Aqueles que acolhem a Jesus e o
reconhecem como Enviado de Deus são dois anciãos de fé simples e coração
aberto, que viveram sua longa vida esperando a salvação de Deus. Seus nomes
parecem sugerir que são personagens simbólicos. O ancião se chama Simeão
(“o Senhor escutou”), a anciã se chama Ana (“presente”).
Eles representam tantas pessoas de fé simples que, em todos os povos de todos
os tempos, vivem com sua confiança centrada em Deus.
Os dois pertencem aos ambientes mais
sadios de Israel. São conhecidos como o “Grupo dos Pobres de Javé”. São pessoas
que não tem nada, só sua fé em Deus. Não pensam em sua fortuna nem em seu
bem-estar. Só esperam de Deus a “consolação” que seu povo precisa, a
“libertação” que andam buscando, geração após geração, a “luz” que ilumine as
trevas em que vivem os povos da terra. Agora sentem que suas esperanças se
cumprem em Jesus.
Pertencemos a uma geração atravessada pelo imediatismo e pressa, com
enorme dificuldade para respeitar processos de longa duração: somos vítimas da
rapidez das redes sociais, navegamos pela internet, usamos meios de transportes
cada vez mais rápidos, cozinhamos no micro-ondas, consumimos sopas
instantâneas...
Vivemos uma quantidade de experiências rápidas, amontoadas,
sem possibilidade de avaliação... e vamos perdendo, pouco a pouco, o sentido da
história pessoal e comunitária.
O problema é que, com frequência,
buscamos aplicar estes mesmos ritmos às relações humanas; no entanto, nem uma
amizade, nem um casal, nem uma família, nem uma comunidade, são forjadas com
essa medida ultra-rápida do tempo; elas precisam de processos lentos de
crescimento e amadurecimento, e isto se torna cada vez mais difícil de
respeitar.
É preciso
recuperar a dimensão de profundidade em nossa vida cotidiana.
É preciso "nos deixar surpreender por
Deus" constantemente. E Deus espera que nos deixemos “surpreender por seu
amor, que acolhamos as suas surpresas”.
É decisivo
estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações,
novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e
inesperado que pode nos enriquecer.
O velho Simeão e a profetisa Ana, a quem Lucas nos apresenta esperando
toda sua vida pela chegada do Messias e glorificando a Deus por tê-lo
encontrado em seus últimos dias, nos oferece a sabedoria do saber esperar.
A imagem que o evangelista nos dá deles é que ficaram sumamente recompensados
por terem passado a vida inteira à espera e que, como a espera não foi
frustrada, mas premiada de maneira abundante, sua alegria se transbordou no
louvor e no agradecimento.
Esperar algo ou alguém requer uma capacidade que costumamos traduzir por
“paciência”, mas que implica muito mais acolher que suportar. Revela uma
capacidade de ser receptivo e isso só é possível com uma confiança que se
instala no coração e que dá forças para assumir a vida concreta, os
acontecimentos e as atividades que trazem em si algo de custoso, penoso,
contrariante...
As imagens que o NT usa para falar
dessa atitude sugerem que aquele que espera já começa a desfrutar no presente
daquilo que é objeto de sua espera, embora a posse total daquilo que já começou
a ser saboreado é ainda objeto de promessa.
Os idosos Ana e Simeão, podem nos
comunicar algo do segredo da esperança, sobretudo no ambiente familiar, lugar
dos lentos processos de maturação humana, tanto dos pais quanto dos filhos.
Texto
bíblico: Lc 2,22-40
Na oração: A vida
cotidiana exige não apenas
fidelidade, mas também amor, gratuidade. É o
lugar que inspira a viver encontros
com a marca da surpresa, da acolhida do diferente, do respeito ao outro...
- Como é o seu cotidiano familiar? rotina e repetição ou desafio e criação? Espaço
de encontros inspiradores ou alimentador da indiferença? Nele há lugar para a esperança
e o novo?
- Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para Deus? Você tem
consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa”
a presença de Deus nos “ritmos familiares”?