“Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes” Mt 25,40
Com a festa de “Cristo Rei” chegamos ao final de mais um ano litúrgico; e o evangelho indicado para este último domingo é o conhecido texto do Juízo final (Mateus) que, devido a interpretações fundamentalistas, tem alimentado muito mais medo que confiança. Não podemos aplicar ao termo bíblico “juiz” o mesmo significado que conhecemos dos termos “juiz” e “juízo” em nossos tribunais.
Deus não é um “juiz”; são nossas obras ou
omissões diante daqueles que foram despojados de seus direitos mais básicos e
de sua dignidade como pessoas, que julgam o êxito ou o fracasso de nossa vida.
O que verdadeiramente nos move e
nos interessa na parábola do Juízo Final não é especular sobre as realidades
últimas, mas dirigir nossa atenção e nosso pensamento sobre a realidade
presente: o que estamos fazendo com o dom da vida nesta vida? Deveríamos nos
preocupar muito mais com os chamados “juízos intermédios” que vamos enfrentando
cada dia, ou seja, se estamos ajudando a aliviar o “inferno” que muitos estão
vivendo nesta terra, oferecendo-lhes um pouquinho de “céu”.
Assim, fechando o ano litúrgico, volta a ressoar
de maneira inquietante, nas paredes da história, a pergunta fundamental: “que
tens feito, que estás fazendo com teu irmão?”
O Evangelho deste domingo nos recorda que a
pergunta pelo Deus de Jesus e seu Reino não remete a uma teoria, ou a um
“princípio”, ou a uma “doutrina”, mas a algo tão concreto, histórico e
cotidiano como é sempre a pergunta pelo próximo. Por isso, nas
relações com os outros, especialmente com os mais empobrecidos e sofredores, é
que se fundamenta nossa relação com Ele.
Não há relação nem culto possível
ao Deus de Jesus que não passe pela prática da misericórdia, da solidariedade e
da justiça com nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis. Suas situações de
indigência, exploração, expropriação de bens e direitos são padecidas pelo
mesmo Deus, porque eles e elas são seus representantes; por isso o que fazemos
a um destes humildes, fazemos a Deus.
A parábola que Mateus relata resume muito bem o
que é essencial na proposta de Jesus sobre o Reino: os gestos de misericórdia
frente às diversas formas de sofrimento. Para caminhar em direção à maturidade
no seguimento de Jesus, devemos nos perguntar frequentemente, durante o nosso
percurso, o que é mais importante, o imprescindível, o inegociável de nossa fé.
Muitas vezes, nossa vida cristã se
perde num emaranhado de normas, doutrinas, leis, práticas “piegas”, que acabam
nos afastando da essência do evangelho e da vida de Jesus. Bem sabemos que,
segundo os evangelhos, o compromisso primeiro de Jesus foi o de aliviar todo
sofrimento humano. Ele não estava preocupado em constituir uma nova religião,
com cargas e cobranças sobre os ombros dos seus seguidores. Sua verdadeira
religião era a vida; sua missão era reconstruir vidas feridas, excluídas e
marginalizadas. Jesus foi um “biófilo”, amigo da vida.
O mais interessante na parábola deste domingo
está no fato de apresentar uma pergunta que nos será feita no último
“cara-a-cara” com Deus: o que fizemos com nosso irmão sofredor?
Esta mesma pergunta já apareceu no início da
humanidade, frente ao fratricídio de Cain sobre Abel: “onde está teu irmão?
O que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim” (Gen 4,9-10).
Uma mesma pergunta que parece ser a única e
decisiva em toda a história da salvação. Não seremos perguntados sobre a
quantidade e qualidade de nossas orações, santas missas, peregrinações,
novenas, penitências, práticas devocionais... Tudo isso só tem sentido quando
nos fazem mais sensíveis e nos levam ao compromisso com o irmão que sofre,
prolongando o modo de ser e agir de Jesus.
Com efeito, o vers. 40 do texto de Mateus nos
revela o fundamento teologal do juízo: “o que fizestes a estes meus
irmãos menores, a mim o fizestes”, diz o Filho do Homem. Há, portanto, uma “identificação
sacramental” entre Jesus e o sofredor. O texto não diz: “é como se
tivessem feito a mim”; ele é muito taxativo: “a mim o fizestes”, ou, “foi a mim que
não o fizestes”.
O
sacramento primeiro é o compromisso com aquele que é excluído, vítima das
estruturas injustas, o rejeitado... Os outros sacramentos só têm sentido quando
nos movem para as margens, para uma presença solidária com aqueles que são os
prediletos de Deus.
Inspirando-nos na parábola do bom
samaritano (Lucas) podemos afirmar que é Jesus quem – identificado com o
assaltado – jaz ferido nas margens da história e, portanto, somos nós que
devemos “salvá-lo” da morte. Portanto, é o próprio ser humano que é convocado a
evitar a dor de Deus na história. E, por isso, a pergunta que normalmente
dirigimos a Deus em meio ao sofrimento – “por
que não fazes algo?”
– nos é devolvida a partir do alto: “o
que vocês estão fazendo para aliviar o meu sofrimento?”.
Em nossas mãos está a possibilidade
de evitar a dor dos excluídos e das vítimas, que é a dor de Deus na História.
Deus sofre na dor dos seus filhos e filhas. Somos nós que devemos dar um copo
de água, visitar o enfermo ou o encarcerado, consolar o triste, incluir o
excluído... Deus colocou a história em nossas mãos e nos dotou de nobres
recursos para que possamos continuar a mesma missão do seu Filho: “aliviar o
sofrimento humano”.
A parábola indicada para a festa
de Cristo Rei afirma que quem deseja entrar no Reino, não deve comportar-se
como um “vassalo” de um rei, mas como um servidor dos mais fracos
e excluídos. Todo ser humano que se “humaniza,
humanizando os outros”, faz presente o Reino. No Juízo, a única coisa que
se leva em conta na hora de valorizar o ser humano é sua humanidade; nas
exigências do “Juiz” não aparece nenhuma conotação “religiosa”, no sentido de
práticas religiosas. A pertença ou não ao Reino, não depende de uma atitude
religiosa, mas de uma atitude vital de compaixão para com os mais
fracos.
Os rostos sofredores dos pobres são rostos
sofredores de Cristo. Eles interpelam nossos compromissos. Tudo o que tem a ver
com Cristo tem a ver com as vítimas sofredoras e tudo o que é relacionado com
os sofredores, diz respeito a Jesus Cristo.
O envolvimento com o “outro” (excluído, pobre,
marginalizado...) nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza,
à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade.
Em seus olhos “vemos o calor da atenção, o brilho da dignidade, o
lampejo do humor, a faísca do protesto. Vemos
também as lágrimas da tristeza, do medo e da insegurança, o sofrimento da
rejeição, a escuridão do desespero”.
Aproximar-nos do “pobre”
e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa
espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor
de nós mesmos e ao nos envolver afetivamente em suas vidas, fazem com que
vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.
Nas experiências de “convivência”
com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles
têm um jeito de nos trazer de volta para o essencial
da vida. Eles são uma fonte de esperança,
uma fonte de autenticidade. Eles se
tornam nossos amigos.
“Nosso
compromisso de seguir o Senhor pobre, naturalmente nos faz amigos dos pobres” (Inácio
de Loyola).
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: Rezar as “obras de misericórdia” encontradas na parábola de Mateus, neste domingo.
No
Documento de Aparecida, as tradicionais obras
de misericórdia ganham nova feição, traduzindo-se em afirmação da
dignidade humana, defesa incondicional da vida, promoção do bem comum, justa
distribuição de renda, inclusão social, defesa dos direitos humanos, acesso aos
bens culturais, salário justo e segurança alimentar (nn. 358-359).
- Sua
experiência de Deus se reduz a algumas práticas religiosas autocentradas, ou é
mobilizadora para ativar uma presença solidária e profética junto aos mais
sofredores? Qual é o “lugar” do seu encontro com Deus?