“Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar...” (Mt 14,22).
Jesus, “homem do mar”. Os
evangelhos o apresentam como carpinteiro/operário da construção. Mas tinha
amigos pescadores e com eles aparece nos evangelhos passando, várias vezes, de
um lado a outro, pelo mar da Galiléia. Jesus não vive só no “terreno
sólido”; Ele vive também “no terreno do mar”, sai dos limites
conhecidos, aventura-se ao novo, abre-se ao diferente...
O evangelho deste domingo nos fala de uma realidade muito humana: somos
seres de travessia e vivemos contínuos deslocamentos, desde o ventre
materno. Saímos de lugares estreitos em direção a espaços mais amplos, até à
travessia definitiva. Toda travessia tem um “para que” (um sentido); ela aponta
para algo maior, inspirador. O perigo é deixar-nos determinar pelo medo,
bloquear nosso espírito aventureiro e nos “acostumarmos” com a margem
conhecida.
O relato sobre a travessia do mar em Mateus nos revela que
há muitas tormentas e ameaças ao nosso redor. Em meio à tempestade levantam-se
ondas de obscuridades sem sentido, de medos paralisantes, de dúvidas
angustiantes... Sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando
tantas seguranças que nos sustentaram, quebrando tantos salva-vidas aos quais
nos agarrávamos...
Mas,
em meio às tempestades urge não perder a calma, ter a coragem de “permanecer na
barca” e não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos
ceguem, que as ondas nos levem...
“Permanecer
na barca” é a palavra-chave: permanecer firmes nos
compromissos assumidos, nos passos que buscam abrir caminhos novos, ainda que
seja arriscado; permanecer ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino e
consentir que os ventos levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias
fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que
não nos impulsionam para a outra margem...; permanecer apenas com a pessoa de
Jesus e seu sonho como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos
contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar
um novo horizonte e um novo sentido para suas existências.
Na tempestade também é necessário “soltar amarras e
içar velas”, ou seja, atrever-nos a “viver no Vento”. Aproveitar dos
“ventos contrários” para transformá-los em “ventos favoráveis” que conduzam
nossa vida para a “outra margem”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos,
de nosso consumismo, de nossa prepotência, afã de domínio, fundamentalismos,
patriarcalismo, machismo... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as
velas das novas ideias, das visões arrojadas, dos projetos criativos, da
riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo
vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros,
indígenas, os sem-terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...),
enfim, acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A
barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos
capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para
receber os novos ventos da história.
Durante
a tormenta aprender a recordar que depois da tempestade vem a calma, para não
perder assim o horizonte nem a esperança. Afinal, somos “seres de travessia”.
Temos entranhas ardentes de voltar ao alto mar, a disposição
de enfrentar tormentas, o desejo de descobrir terras desconhecidas, a exploração
do novo, a paixão por um horizonte de sentido.
Tantos anos ancorados em portos seguros, com ritmos e
horários pre-fixados, sem criatividade e sem intuição...; agora é tempo de nos
perder no mar, com a proa voltada para a imensidade...
Este é o desafio: despojar-nos do medo, romper os limites e
confiar no Sopro, sutil ou tormentoso, que continua nos conduzindo para onde
não sabemos. Reconhecer o temor nos impulsiona fortemente a atravessá-lo, a
abandonar desculpas esfarrapadas, a não nos deixar prender pelos custos
previsíveis. Continuar quebrando nossas pobres seguranças, despojar-nos daquilo
que nos alivia e sair, sem alforge, nem duas túnicas, sem sandálias...
A travessia traz e leva inovação.
Deslocar-se, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma alteração do
ângulo habitual, uma exposição ao diferente, um amadurecimento do próprio
olhar, um reconhecimento de que alguma coisa nos falta, uma adaptação a
realidades, tempos e linguagens, ou a descoberta de uma incapacidade para tal;
um confronto indispensável, um diálogo tenso ou deslumbrado que nos deixa,
necessariamente, com uma tarefa futura (Card. Tolentino).
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que sabe estar longe de seu
centro e entende sua missão de busca e peregrinação interior, de
colocar-se em movimento...
Sair da margem
conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade...
A outra margem:
lugar provocador, incitador e que
desperta curiosidade... É aqui que brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, os projetos ousados, as ideais
vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da
acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas;
implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar
para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em
seu próprio interior...
Os poetas, artistas,
místicos... são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”,
vislumbram o outro lado, tocam as raízes
mais profundas do próprio ser.
O seguidor de Jesus tampouco
sabe o que há do outro lado. A ele, como aos demais, lhe custa ver claramente.
No entanto, considera que a outra margem é talvez diferente, mas tão
apaixonante como esta margem onde ele está; e então, decide animar-se a cruzar a
vastidão do mar interior.
Em resumo: nessa experiência
não se trata tanto de “chegar”, mas de “ser levado”, pois nossos remos não
servem para vencer a distância e a correnteza, e precisa do vento benfeitor que
sopre, dirija, empurre e persevere, até a outra margem.
No nosso processo
espiritual queremos desenvolver esta capacidade de ver quem nós somos e onde
estamos, sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis.
Somente partindo da realidade de nós mesmos, que é
sempre uma realidade rica e original,
é que poderemos crescer como “peregrinos”
em direção à nossa interioridade e
em direção a um maior compromisso.
A percepção e o sentido da nossa própria identidade vão se ampliando quando
surge uma capacidade de interessar-nos por realidades mais amplas e desafiantes...Novas
ideias, novos mundos, novos sonhos e
projetos... vão definindo nossa identidade
pessoal.
Se uma pessoa não criar intensos interesses “fora dela mesma”, viverá
alienada em sua existência, fechada no seu pequeno mundo. Se ela se expande
passará, então, a participar de outras esferas significativas da vida,
dedicando-se a uma grande quantidade de interesses
e projetando-se ardo-rosamente para o futuro.
Isso significa ser “habitante de fronteira”.
Texto bíblico: Mt 14,22-33
Na oração: Diante de Deus, deixe seu coração responder:
- Tenho medo
de alguns “aspectos” de minha vida?
- O que está
me “amarrando”, impedindo-me atravessar para a outra margem?
- Tenho
consciência que em meu interior ainda existem “terras inexploradas”?
- Que
“meios” utilizo para chegar a esta “fronteira do coração”?