“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido” (lc 2,20)
Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o
contínuo movimento dos momentos, todos
idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se
faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e
limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como
uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e
para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do
tempo.
O tempo se torna “kairós”,
ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar
nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa
disposição.
Integrar-nos mais pacificamente no
fluir do tempo, vivê-lo amavelmente
sem stress, reconciliar-nos com o tempo,
desfrutá-lo com prazer e alegria de modo distendido e com paixão, ter a
tranquilidade suficiente para realizar com gosto, criatividade, paz e
concentração as atividades que nos cabem assumir... eis a questão! Buscar uma
nova maneira de viver o tempo, de senti-lo,
de captar sua força e beleza, seu sentido e sua plenitude...de perceber o
pulsar profundo de nosso modo de estar na vida... eis o desafio!
Nos momentos de alegria, de prazer,
de descanso, de festa... o tempo
torna-se um aliado que constrói nosso ser, uma energia que nos alimenta, que
nos capacita para o melhor e o mais alto.
A espiritualidade bíblica, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer essa “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal
espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos
introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Nessa perspectiva, não
vivemos o tempo como se este fosse
algo meramente plano e indistinto. Cada ano, cada dia e cada momento tem seu
matiz, sua cor e sua novidade.
Somos seres
de “travessia”, no tempo e no espaço. Cada ano de vida que passa, outro surge à
nossa frente, ativando em nós dinamismos mais nobres, desejos mais oblativos,
energias mobilizadoras…
Às vezes
fica a sensação de que não conseguimos agradecer o suficiente diante de tudo o
que foi vivido. Reconhecemos que uma lista interminável de situações e
vivências não foram bem integradas e que é preciso reservar algum momento para
trazê-las à memória, relê-las, re-significá-las, saboreá-las e dar graças.
Assim entendida, poderíamos dizer
que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “obrigado”
e “sim”. Diante de tudo o que foi, “obrigado”; diante de tudo o
que virá, “sim”.
Entre o “obrigado” e o “sim”
transcorre a vida sábia. Isso traz uma profunda gratidão, pois só ela integra
os tempos – passado-presente-futuro – no “Hoje” eterno de Deus. Só a gratidão
é capaz de despertar os dinamismos e recursos internos para viver o “novo
tempo” com mais inspiração e criatividade.
Nesse sentido, a memória
agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão.
Ao fazer memória dos dons e bens
recebidos do ano que passou, brota naturalmente do nosso interior, o desejo de
dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo.
É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro
de nossa vida.
“A gratidão é a memória do coração”
(Paul H. Dunn))
Aquele que
é marcado pela experiência de que é tudo é dom e dado pelo Deus providente,
adquire a fina percepção de que tudo é graça, tudo é “de graça”, somos
“agraciados”, “cheios de graça”...
É Ele mesmo
que, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e
gratos”.
Só Ele é
capaz de dar o verdadeiro sentido e força à expressão “de graça”; só a
generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e
encorajar atitudes oblativas em nós.
Se a memória da
mente é a lembrança, a do coração encontra expressão na gratidão.
Afinal, ser grato é uma forma de memória: memória agradecida, redentora.
Normalmente, vivemos inúmeras bênçãos diárias que esquecemos. Quanto maior a memória
do coração mais ele poderá nos mostrar o quanto somos gratos.
Na
espiritualidade cristã, a gratidão nasce com naturalidade e
espontaneidade nos corações humildes, nas pessoas conscientes de que aquilo que
recebem não é por mérito ou retribuição. Tudo é gratuidade.
O
agradecimento é a experiência humana que mais mobiliza a generosidade da
pessoa; a gratidão é a mais
agradável das virtudes: quê virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais
humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão
incondicional.
A experiência nos diz que a gratidão,
juntamente com o amor, é um dos sentimentos mais terapêuticos, capaz de
sustentar nosso “elán vital”. Por um
lado, nos afasta do funcionamento da queixa, da lamentação e do pessimismo
diante de tudo o que aconteceu; por outro, ela constitui o melhor antídoto
frente ao desalento ou o desânimo.
A gratidão nos centra, nos
re-situa, nos faz porosos, nos abre a dimensões infinitas, arrancando-nos de
mecanismos egocentrados, que nos fazem girar sobre nós mesmos de um modo
doentio.
Através de uma simples observação
poderemos tomar consciência que a gratidão verdadeira não depende tanto daquilo
que nos acontece, quanto do modo como recebemos tudo o que nos acontece. Se
agradecemos só quando ocorre algo que consideramos “agradável”, é sinal que
ainda não saímos de nosso egocentrismo.
Como o amor, como a alegria...., como tantos outros
sentimentos nobres, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser
exercitada no ritmo cotidiano, onde, conscientemente, damos graças por tudo.
Na medida em que exercitamos a gratidão, ela vai nos
transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os
outros, com as criaturas e com o Criador Em certo sentido, poderíamos dizer que
ela expande o nosso coração, favorece a alegria de viver, reforça os laços e
facilita poderosamente a convivência. Por isso, quando sabemos olhar em
profundidade as pessoas e a realidade, a gratidão aflora sem obstáculos. Pelo
contrário, quando permanecemos presos às nossas expectativas, a frustração
inevitável trará consigo a resistência, o sofrimento, a queixa, o vitimismo...
Sem a gratidão
corremos o risco de nos “secar por dentro” , perdendo a
simplicidade, a espontaneidade, a criatividade, a ternura... Só a gratidão
alimenta a consciência de que vivemos um tempo único, um tempo decisivo
para um contínuo renascimento em direção a um horizonte de sentido.
Com isso, reconhecemos e crescemos
na compreensão de que, a partir da partir da dimensão espiritual, a gratidão
não é simplesmente uma atitude ou qualidade, algo que podemos viver com maior
ou menor intensidade; mais do que isso, a gratidão é outro nome de nossa identidade
profunda: somos Gratidão.
Ao vivê-la conscientemente,
experimentamos unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.
Na oração:
É importante alimentar a gratidão,
mantê-la
viva e
ativa. Não é natural que percamos a consciência do muito que temos recebido e
continuamos recebendo, como possibilidades de vida e de sentido, como dons e
capacidades, como criatividade e sonhos...
Tudo
se pacifica quando a gratuidade marca seu ser por inteiro. A vida nova vem da Vida
recebida e partilhada.
-
Neste início do novo ano, assuma a atitude de pensar e falar agradecidamente, com
gestos gratuitos.
- Diante d’Aquele de quem tudo procede, faça memória de todos os dons recebidos, deixando brotar do seu coração uma atitude de contínua ação de graças.