“Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão (...) começou a ensinar-lhes muitas coisas”
Os discípulos regressaram da missão à qual Jesus os tinha enviado e
Herodes acabara de assassinar João Batista. Jesus se retirou para descansar com
os discípulos, do outro lado do lago. Precisavam tomar distância, conversar
juntos e de maneira tranquila sobre esse momento dramático, em um espaço
sossegado, mais íntimo e profundo, sem a urgência permanente que a pressão do
povo introduzia em suas vidas e não tendo tempo nem para comer. Não eram
pessoas das cidades importantes que procuravam Jesus. Diz o texto de Marcos que
saíram “de todos os povoados” e foram
“correndo”, com pressa, com expectativa
e esperança, ansiosas para encontrar-se com Ele.
Ao ver a multidão, Jesus se comoveu até as entranhas, porque “andava como ovelhas sem pastor”, com
fome, oprimida pelos impostos, desconcertada diante do presente e com medo
difuso diante do futuro ameaçador e inseguro. E Ele começou a ensinar-lhes
longamente, muitas coisas, de tal maneira que as horas foram passando sem se
darem conta.
Jesus não só transmite um ensinamento, senão que cria uma relação nova
com o povo e de uns com outros, segundo o espírito do Reino. Todos somos feitos
para nos encontrar com um Tu inesgotável, que ilumine nossa existência e nos
transforme inteiramente, de tal maneira que sejamos capazes de estabelecer
relações novas com nossa própria história pessoal, com os outros e com toda a
criação.
O ensinamento de Jesus revela-se, antes de tudo, como um encontro inspirador
que o move a se aproximar de todas as pessoas, revelando-lhes a dignidade
infinita que cada uma carrega dentro de si. Trata-se de um encontro que não vem
envolvido em roupagens exóticas nem em rituais frios; sua grandeza se expressa
numa proximidade tão simples e humana, onde a interação de sentimentos e afetos
engrandece a todos. Nesse sentido, o novo ensinamento de Jesus tem a marca da
“compaixão”.
Um dos sintomas de desumanização, que está revelando seu triste rosto no
contexto atual, é o fato de deixar-nos de vibrar com o que os outros vivem,
viver como alheios uns dos outros, blindar-nos uns frente aos outros..., ou
seja, incapacitar-nos para a compaixão. A compaixão está cada vez mais ausente
da esfera pública e de nossas relações com o outro diferente e com o outro
distante que sofre. Aqui está a chave da incapacidade de nossa sociedade para
responder aos desafios atuais.
Vivemos num contexto social onde somos ameaçados por uma forma sutil de “a-patia”.
Aqui a compaixão se quebra com excessiva facilidade, se atrofia e se transforma
em “sem-paixão”. Com isso, nas nossas relações se desumanizam. Tal “sem-compaixão”
é uma enfermidade social, um problema coletivo, algo que vai se fechando mais e
mais, de tal modo que as pessoas vibram com menos gente, em círculos íntimos, e
unicamente com quem faz parte do seu “gueto”.
Acostumamo-nos com a lógica deste mundo, que esvazia nossa
capacidade de nos surpreender ou de nos inquietar; impermeabilizamos o coração
frente à magnitude das feridas sociais, conformando-nos em responder “não há
nada que fazer”. Vão desaparecendo os horizontes de sentido que incluem a alteridade.
Qualquer implicação com o outro implica suspeita, frieza, distância,
preconceito. Não basta a sensibilidade ou o sentimento. Não ficamos indiferentes
quando a dor dos outros entra em nossas salas de estar. Mas, tão rápido como
chega, o sentimento se vai, e não nos mobiliza porque não tem pontos de conexão
com a realidade da exclusão.
A “privatização da
vida”, a sensação de impotência diante das tragédias, a distância midiática
(informação fria da realidade que não nos afeta e não desperta nossa paixão), a
distância física, a não-comunicação (não há tempo para falar e escutar, os
eletrônicos povoam nossos silêncios, o ativismo impede dedicar-nos uns aos
outros), a falta de motivação (por quê deixar o outro invadir minha vida ou
encher-me de inquietação?), a dificuldade para compreender a diferença
(transitamos nos círculos de iguais ou semelhantes, compartilhamos gostos,
modas, inquietudes, status, temos problemas comuns e metas similares, usamos
produtos parecidos, lemos os mesmos livros e vemos os mesmos filmes), etc.
Quem olha para as
manchetes de notícias, as escolhas e comportamentos atuais, talvez se deixe
convencer de que a compaixão está perdendo a referência no elenco dos
sentimentos humanos mais nobre. Afinal, produtividade, eficiência,
competitividade, revelam-se “pobres” de atitudes compassivas.
No entanto, somos seguidores(as) do Compassivo;
Jesus não passa “friamente” por nada.
Ele não passa indiferente ao lado da fome, da doença, da exclusão, da morte...,
não passa friamente ao lado das multidões que vivem como ovelhas sem pastor.
Seu sentimento está sempre engajado: Ele é o homem da prontidão de sentimentos,
que deixa transparecer uma profunda sensibilidade. Sente-se “tocado” pela dor e miséria.
E jamais fica em sentimentalismos supérfluos; sua empatia e simpatia
extravasam-se em ações comandadas pela compaixão: ela flui e jorra de seu
coração. Os Evangelhos destacam os profundos sentimentos de humanidade, compaixão, empatia, ternura e
solidariedade misericordiosa de
Jesus. Muitas vezes é mencionado que o Senhor foi “comovido até as entranhas” e teve “frêmitos de compaixão”; trata-se de sentimento eminentemente
humano.
Até podemos fazer referência origem etimológica da palavra “compaixão”. E aqui é muito pouco o
apelo ao vocábulo latino “cum-passio” (“padecer com”). É preciso um novo passo.
Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão está ligada às
disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua os termos “compaixão”
e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre materno acolhe a vida,
envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo semelhante fez o Senhor ao
aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”: suscitou-lhes a esperança com
expressões de amor fraterno. Foi uma aproximação generativa, isto é, gerou impulsos
para uma nova vida.
Num mundo em que o
anonimato impera e uma falta de compromisso com o outro parece predominar, é
preciso ativar a compaixão, que começa pela capacidade de fixar o olhar nos
rostos, desmontando os pré-juízos, ou pela possibilidade de perguntar ao outro
por sua vida, seus sonhos, suas preocupações, seus desejos e sua dor. Procurar
entender seus motivos sem passar logo a interpretá-los, a etiquetá-los ou a
julgá-los. Aprender a escutar suas histórias e a acompanhar suas inquietações.
A moção de compaixão
permite que do coração humano brote a “excentricidade”. A experiência
cristã não nos imuniza contra a contaminação do “amor próprio, querer e
interesse”; mas a pulsão solidária e compassiva para com o pobre e
excluído, permanente e profunda, se converte na fornalha que purifica a
insaciável autoafirmação e interesses que todos temos, e vai gestando, pouco a
pouco, personalidades excêntricas, livres do domínio despótico do “ego”.
Texto bíblico: Mc 6,30-34
Na oração: Ser compassivo implica
buscar e ativar uma disposição em sair das fronteiras do conhecido e do
habitual, dos circuitos familiares e das dinâmicas mais rotineiras, para entrar
em sintonia com as pessoas que são vítimas de estruturas sociais e políticas
que geram miséria, dor e exclusão.
- Compaixão ou
indiferença? Eis o desafio! Qual delas se manifesta com mais constância em seu dia
a dia?
Texto: Pe. Adroaldo Palaoro, sj
Foto:https://bit.ly/3eigAbd