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Tempos litúrgicos


Seguir Jesus é ter entranhas peregrinas

 “Recomendou-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado”

(Mc 6,8)



 




O Evangelho deste domingo marca o começo de uma nova etapa na vida e missão de Jesus. Os discípulos vão estar incorporados à missão que, até agora, era realizada só pelo Mestre. Depois da experiência de fracasso na sinagoga de seu povo, Jesus não só intensifica o anúncio da “boa notícia” do Reino, mas compromete os seus discípulos nesse ministério. A rejeição dos dirigentes e dos seus conterrâneos o obrigam a buscar outros interlocutores que não estavam “viciados” pelo ensinamento oficial

 

Jesus, na Galiléia, encontrou os seus caminhos: junto ao mar, nas estradas poeirentas, nas margens. Ele se fez “estrada” para encontrar aqueles que não tinham “lugar”, os deslocados, os socialmente rejeitados e que eram a razão de seu amor e do seu cuidado; fez-se solidário com aqueles que estavam à beira dos caminhos e os convidou a caminhar para um novo lugar. Na Galiléia, Jesus teve suas preferências e escolheu o caminho da exclusão e da dor. Por isso, ao enviar seus seguidores, lançou-os na “estrada da vida”, para serem presenças de vida onde a vida era violentada: curar, expulsar demônios. Para Ele, o caminho é o lugar do novo, das surpresas, dos encontros.

 

Inúmeros cristãos entendem sua fé só como uma “obrigação”. Há um conjunto de crenças que devem ser “aceitas”, embora muitos não conheçam seu conteúdo nem saibam o impacto que podem ter em suas vidas; há também um código de leis que “deve” ser observado, embora muitos não entendam bem tanta exigência atribuída a Deus; existem práticas religiosas que “devem” ser cumpridas, mesmo que seja de maneira mecânica. Esta maneira de compreender e viver a fé gera um tipo de cristão medíocre, sem desejo de Deus e sem criatividade nem paixão alguma por contagiar sua fé. Contenta-se com “cumprir”. Esta religião não tem atrativo algum; converte-se em um peso difícil de suportar e provoca alergia em muitos.

 

Na vivência cristã, muitos passam do seguimento do “Homem das estradas poeirentas” ao mero cumprimento de normas, ritos, doutrinas. No entanto, o caminho de Jesus não vai pelo terreno pantanoso do legalismo e do moralismo, mas pelo terreno firme da misericórdia, do cuidado, do compromisso com a vida. Jesus tinha alergia a lugares fechados, mofados; ele preferia transitar pelos lugares abertos, arejados, porque se deixava conduzir pelo Espírito.

 

Já nas primeiras comunidades cristãs o seguimento de Jesus era vivido de outra maneira. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso”; a vivência do seguimento de Jesus era conhecida como “caminho”, que era a maneira mais acertada para viver com sentido e esperança. Dizia-se que o seguimento era um “caminho novo e vivo” e que foi “inaugurado por Jesus para nós”; um caminho que deve ser percorrido “com os olhos fixos n’Ele” (Heb 10,20; 12,2). Os cristãos eram conhecidos como os “adeptos do caminho”.

 

Por isso, seguir Jesus Cristo era aderir a Ele incondicionalmente, era “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir era deixar-se “configurar”, isto é, movimento pelo qual a pessoa ia sendo modelada à imagem de Jesus Cristo. A nossa vida é um êxodo, um sair constante do modo fechado de viver para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida. Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar. Precisamos ser discípulos(as) da escola da vida.

 

É de suma importância tomar consciência que a fé é um “percurso” e não um sistema religioso. E no percurso há de tudo: caminhada prazerosa e momentos de busca, desafio que é preciso superar, retrocessos, decisões, dúvidas e interrogações. Tudo faz parte do caminho, também as dúvidas que podem ser mais estimulantes que as poucas certezas e seguranças vividas de forma rotineira e simplista. O caminho é coletivo, mas está feito de identidades particulares, onde cada um é responsável e cuidador de seu próprio processo itinerante. Cada pessoa é, onde habita, um fio tecedor de relações e interconexões, uma presença que ajuda a construir uma cultura de diálogo acolhedor, em permanente abertura ao encontro. Esta é a sabedoria divina que se expressa e se faz próxima em todos os detalhes da vida.

 

Cada um(a) é chamado(a) a fazer seu próprio percurso; cada um(a) é responsável da “aventura” de sua vida; cada um(a) tem seu próprio ritmo. Não é preciso forçar nada. No caminho cristão há etapas: as pessoas podem viver momentos e situações diferentes. O importante é “caminhar”, não se deter, escutar o chamado que a todos nos faz viver de maneira mais digna e ditosa. 

 

“Fazer estada com Jesus” pede de todos nós uma atitude de abertura e de deslocamento frente ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele. Importa, pois, re-descobrir com urgência o encontro como valor ético e como hábito permanente de vida. 

Precisamos nos levantar cotidianamente de nossos ambientes atrofiados, arejar nossa vida, criar vínculos com aqueles que estão à margem; há sempre uma “estrada ferida” que nos espera.

 

Faz parte do processo de amadurecimento espiritual, abandonar as poeiras que, desnecessariamente, carregamos. Não se trata de esquecer o passado ou de ignorá-lo, abandonando nossa história. Mas há coisas e situações que carregamos que nos fazem ficar presos, impossibilitados de alcançar novos rumos, novas realizações. É preciso sacudir a poeira dos pés, em sinal de verdadeiro desapego. Desapegar-nos de coisas e situações é um processo importante no desenvolvimento de uma espiritualidade que nos faça crescer humanamente. 

 

A orientação de Jesus nos faz recordar a impactante frase-conselho de Frida Kahlo: “Onde não puderes amar, não te demores”. Não há motivo razoável para que permaneçamos onde o amor não pode acontecer e se realizar. Ajuda-nos, ainda, a sabedoria poética de Mário Quintana, de que “amar é mudar a alma de casa”. O amor é sempre saída de nós mesmos. Mas há portas fechadas. Nesse caso, não é espiritualmente saudável permanecer com a poeira nos pés. É preciso sacudi-la, e seguir viagem.

 

A paixão pelo Reino nos mobiliza a levar adiante a missão, a ir aos lugares do mundo onde há mais necessidade e ali realizar obras duradouras de maior proveito e fruto. Para realizar esta nobre missão, não podemos permanecer sentados. Seguir Jesus exige de nós uma dinâmica continuada, um colocar-nos a caminho em direção às margens. Não podemos viver o chamado do “Rei Eterno” a partir de uma cômoda instalação pessoal. A disponibilidade, o despojamento e a mobilidade são exigências básicas.

 

Corremos o risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido, deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece, acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados, ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Deixar a vida estreita para entrar no vasto horizonte de vida proposto por Jesus: eis o desafio!

 

Texto bíblico:  Mc 6,7-13

 

Na oração: Deus nos chama a cada dia para o desconhecido, para o novo; Deus nos tira de casa, nos faz sair do que é nosso, da segurança, da comodida-de... e nos faz entrar numa “terra nova”.

 

- No “mapa espiritual” de seu interior (sentimentos, desejos, sonhos) ainda existe uma “terra desconhecida”, que proporciona interesse à vida, suscita curiosidade, lhe impulsiona a caminhar?  

Ou está tudo amarrado, formatado, atrofiado, esvaziando seu espírito de busca?

 

 

Texto: Pe. Adroaldo Palaoro, sj